A Cultura do Repúdio
“When the episteme is ruined, men do not stop talking
about politics; but they now must express themselves in the mode of doxa” Eric
Voegelin
Quem
resolve se aventurar no frontcourt ideológico
das redes sociais, não passa despercebido pelo crescimento da rígida
cristalização das posições políticas como forma de socialização. A fauna
ideológica é ampla. A falta de honestidade intelectual também. Ao demonstrarem
posições políticas rígidas, sem a devida reflexão das nuances da realidade, da
complexidade das questões levantadas, e tampouco conhecimento do “estado da
questão”; certos jovens procuram se inserir num grupo político, geralmente
professando doutrinas. É a pressa da opinião. O palpite como auto-rótulo e
identificação grupal. Mais ou menos estado na economia? O catecismo está
pronto. Pois, só uma solução é possível: menos estado. Ou: mais estado. O
receituário farmacêutico para um mundo melhor: basta eliminar o antagonismo, ou
seja, os inimigos. Entretanto, tudo que quer dar solução ao mundo sempre
termina em cortes de cabeça. Questões abstratas – ou doutrinas – sufocam os
problemas concretos de seres humanos reais. Direita e esquerda: essas duas
filhas da revolução.
Do
que importa o conhecimento, a investigação da realidade, a busca pela verdade?
Tudo isto exige trabalho, dedicação, longo prazo. A vida intelectual, em suas
camadas mais genuínas, ronda em torno do amor a verdade e do desprezo pela
desonestidade. Professar regras, cair em lugares-comuns, usar slogans
ideológicos, sem a devida reflexão e maturação de todas as objeções relevantes
que foram levantadas, é o exato oposto daquele sentimento. Serve a política
(mais mesquinha), e não a vida intelectual. Pode ajudar nas conquistas
materiais e imateriais pela identificação com um grupo de pares, mas embota a
visão. Contra este “politicismo de tempo integral”, o intelectual deve arejar o
ambiente com prudência. Essa forma rígida de socialização é comum ao homem-massa,
segundo nos legou teóricos tão diferentes em alguns pontos, como Ortega y
Gasset e Theodor Adorno.
O
espírito da massa começa no reconhecimento do inflexível repúdio pelos que
estão fora (out group). E em sentido
mais estrito pode ser inserido num processo mais amplo, que podemos chamar de
“cultura do repúdio”. Repudiar o existente; a vida como tal; entediar-se com as
agruras do real e aspirar sempre um novo e imediato momento; cair no canto das
sereias; mandar tudo às favas e começar de novo; são sentimentos comuns a essa cultura.
O repúdio é sempre passional. E uma massa tomada pela emotividade sempre foi em
todos os tempos, segundo a deusa-mestra da história, prato cheio para os
demagogos.
A
cultura do repúdio bebe na mentalidade revolucionária. Pois, esta se define
como um estado de espírito, no qual um grupo objetiva remodelar a sociedade,
quando não a natureza humana, por meio dos instrumentos políticos. Ao tratar a
essência humana como plástica, desejando a refundação do homem e da sociedade,
o espírito revolucionário repudia a realidade.
O
tempo acelerou-se, o paraíso deslocou-se para terra (pois, as utopias modernas
nada mais oferecem do que o paraíso na terra), e agora, a felicidade nos é
imposta: seja feliz, sem neuras. Eis, a nova “moralidade” dos nossos tempos:
faça aquilo que queira. Em outras palavras, volte a ser criança. A vertigem que
nos cerca (nas ruas ou nas redes sociais) recolhe a reflexão, nos tira o tempo
para ativar a memória. Transforma-nos em indivíduos artificiais numa massa
amorfa. O concreto é suspenso pelo abstrato. A caricatura reina: da verdade, da
maturidade, do homem.
A
cultura do repúdio é a cultura do esquecimento, pois começar sempre de novo é
esquecer daquilo que já se foi. As vivências passadas não se tornam
experiências, porque não há mais aprendizado. O que se viveu deve ser esquecido
em prol do novo acontecimento. Sem a reflexão do ocorrido, o homem não se torna
maduro, pois não acumula mais experiências.
Ao
recordar, ativamos a memória e o nosso passado como experiência. Memória dos
pecados cometidos. Desejo de reconciliação, tomar a sua vida para si: saber o
que se está fazendo. O indivíduo maduro é estável perante os limites da vida,
não se deixando levar pelos torvelinhos do sempre novo. Ele balanceia seus
impulsos mais imediatos e dissonantes com a racionalidade adquirida com a
experiência, equilibrando tensões inerentes ao sujeito. Faltam homens maduros,
abundam crianças palpiteiras.
Neste
sentido, Ortega y Gasset lembra-nos que a memória é o que diferencia o homem do
orangotango. Pois este possui uma memória limitada, tendo dificuldade
reconhecer o que se passou no dia anterior, e sendo obrigado a trabalhar com um
material mínimo de experiências. Ao não transformar vivência em experiência, o
homem – num estranho progresso – vira-se para o estado primitivo do orangotango.
Assim, a cultura do repúdio é o rebaixamento do humano ao orangotango. Contra
isto, o homem deve ter direito à continuidade, apropriando-se do passado ao
aprender com os erros, garantido numa razão histórica que ao reconhecer os
erros, aprende com a incompletude e infinitude humana
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