Quem viveu o turbulento inverno
de 2013 nas terras tupiniquins não pôde passar despercebido por uma crença
coletiva: o povo nos salvará. Os desejos fragmentados, a falta de organização
sistemática, o sentimento de negação das estruturas político-partidárias, ao
contrário da avaliação geral, apenas confirmaram o paradigma moderno, realçando
suas consequências neste processo. Sendo este mais resultado do que sintoma de
quebra.
Para um camponês medieval, a vida
era passagem, e a felicidade estaria noutro mundo, alcançada por um momento redentor
onde poderíamos ser contemplados com o paraíso perdido. Na era moderna, com a
secularização, o paraíso desloca-se para terra. "O paraíso terreno é onde
eu estou", dizia Voltaire. A política substituiu a religião, e o conceito
abstrato de povo tornou-se sagrado. A redenção do mundo se dará política,
através da patuleia.
As utopias modernas, mais
notadamente o marxismo, prometiam fazer da terra o nosso paraíso. O Comunismo
seria o fim da pré-história e começo da verdadeira história da humanidade, nos
livrando da alienação, e onde “(me possibilitaria) fazer hoje uma coisa, amanhã
outra, caçar de manhã, pescar à tarde, pastorear a noite, fazer crítica depois
da refeição, e tudo isto a meu bel-prazer”. A felicidade está ao alcance dos homens
e o meio para alcança-la encontrar-se-ia na política. As utopias eram
coletivas. A felicidade paradisíaca torna-se um direito, que os homens precisam
conquistar através da política, seja institucionalmente ou por meio de uma
revolução.
No pós-guerra, com todos os
aprofundamentos do moderno (o que chamamos de “pós-modernidade”, “capitalismo
pós-industrial”, “modernidade tardia”, etc.), a busca pelo paraíso foi atomizada,
fruto da própria lógica interna desse mundo que vai derretendo o que é sólido,
como uma escavadeira que faz um túnel numa montanha.
Hoje, poucas pessoas acreditam
numa sociedade ideal, de felicidade perene para todos. A busca pela felicidade
individualizou-se. As pessoas continuam a procurar o seu paraíso na terra, mas
neste só há um bilhete de entrada. A felicidade virou um dever. Um dever
pessoal.
Ouvidos atentos ao senso comum e iremos
escutar: “faça o que tenha vontade”, “faço o que quero”, “o que vale é se
divertir”, etc. É preciso fazer o que se quer para alcançar a felicidade. Dar consequência
aos seus desejos; colocá-los em prática para chegar ao paraíso. Tirania da
vontade. Homens que buscaram o domínio da natureza e do instinto para construir
este imenso cosmos cultural (até o ponto de achar que tudo é cultura), e que encontra
o seu retorno por outros meios.
Os desejos impulsivos submetem a
consciência do homem contemporâneo, que perdeu a capacidade de tomar a sua vida
para si. O homem que não reconhece os seus limites vive a pior das escravidões.
Desesperado por cada ato que lhe saia do controle e que lhe prive do gozo, ele
não reconhece mais a dor, a perda, a insuficiência, como partes necessárias da
vida tão quanto o complemento, a felicidade, a alegria. O paraíso está ao alcance
de cada indivíduo, que age impulsivamente de acordo com suas vontades e sem
qualquer julgamento moral. Diante disso, não se espanta o crescimento
assustador do inverso prático da moral: o moralismo. Primeiro como direito,
depois como dever, na era da felicidade obsessiva nunca se viu tanta depressão.
Entretanto, essa atomização não
expulsa a política da nossa vida, mas a enreda num tipo de messianismo ainda
mais compulsivo e perigoso. A política se tornou a esperança da solução final
para nossas vidas. Como nos sentimos infelizes por não ser feliz; por não sabermos
mais lidar com os limites da vida e com suas condições inerentes, como a tristeza
e a dor, a doença e a decadência, a velhice e a morte, que são vistas como
aberrações indesejáveis que deveriam ser evitadas; a insatisfação e o
sentimento de que alguém nos boicota se manifesta. Fazer política se tornou
atacar um bode expiatório tão fluido e material quanto às artimanhas da ciência.
A política volta como
a insuficiência que não nos deixa ser feliz. A política como redentora volta sob
meios ainda mais perversos. Não se deseja mais a execução de um projeto
político redentor (comunismo, nacional-socialismo, etc.), mas a expressão da
própria negação dos limites da vida. Uma micropolítica do dever de felicidade
que entra nessa esfera para redimir-se por vias negativas. Você quer tudo, e
não obterá nada. E cada vez mais se sentirá angustiado por isso.
A leitura comum dos protestos de
julho nos conta que uma massa de pessoas preenchia o vácuo das ruas por aperfeiçoamentos
institucionais: melhor educação, saúde, segurança, menos corrupção, e contraditoriamente,
menos tributos. Que a massa balbucie contraditoriamente mais direitos e mais
Estado com menos impostos e entraves na consecução dos seus desejos; não chama
atenção dos especialistas de sempre. Contra e a favor de uma PEC, pedindo menos
impostos, ou mais Estado, ou por qualquer outra coisa, todos marchavam
acreditando na redenção política, não mais como utopia, mas como entrave da nossa
felicidade individual. Cada qual com seu cartaz, cada qual com seu projeto,
cada qual com seu bode expiatório. As pessoas se tornavam átomos que nada
defendiam em conjunto, apenas se encontrando por terem em comum essa doença que
marca o espírito do homem moderno. É preciso consertar o país. É preciso
consertar a política. E para isto, o povo nas ruas nos redimirá.
Quando você quer melhorar algo em
sua rua, procura os vizinhos, cria uma articulação, resolve o problema ou
procura os poderes constituídos para tal. Cria-se uma rede de cooperação em
busca de uma melhoria palpável e real. Busca-se resolver o problema específico
de fato. Diferente se dar quando o seu objetivo é “mudar o mundo”. Antigamente,
a massa dispersa nas ruas ao buscar a consecução de uma utopia política (seja
por reforma, ou revolução) ainda guardava os resquícios do velho espírito
associativo, havendo interligação entre projeto e ação. Com a diferença de que
se amava a humanidade (querendo consertá-la) enquanto odiava-se o próximo e os
seus problemas “pequenos”, a base das associações.
A massa amorfa nunca formou um espírito comunitário, por que a base da vontade utópica sempre foi uma espécie de niilismo. A base da associação sempre foi o amor por um homem existente, enquanto a base do espírito utópico sempre foi o amor por um homem futuro, não presente. Dizia Camus: “A revolução consiste em amar um homem que ainda não existe. Mas aquele que ama um ser vivo, se realmente o ama, ele só aceita morrer por ele.” O homem revoltado se rebela contra o mundo por achá-lo injusto, culpando a realidade por nossos limites, por nossa condição humana trágica. No fundo, a revolta do homem moderno é contra sua criação. Ele se vê frustrado diante dos limites humanos, de nossa pequenez, de nossa incapacidade para completude, ao ponto de tornar sua fuga dessa condição um fingimento histérico, negando a existência de uma essência humana. Como argumenta Camus, a não aceitação desta criação é parecida a de um escravo que se revolta. O escravo que se insurge contra o seu senhor, reconhece primeiro este senhor e sua supremacia para poder se revoltar; o homem revoltado reconhece Deus, para poder blasfemar. Conclui Camus sobre o homem revoltado: “Para combater o mal, o revoltado, já que se julga inocente, renuncia ao bem e gera novamente o mal”.
Hoje, a massa encontra-se mais do que nunca dispersa na praça, falando para dentro, ensimesmada, e sem diálogo. Cada qual com seu alívio, buscando remover as pedras que impedem o gozo na marcha da felicidade paradisíaca. Em frente, pelas ruas, como se essa fosse a mais excelsa condição.
Ninguém parece estar disposto a arriscar sua vida por uma utopia coletiva, na busca por um paraíso coletivo na terra, como fruto necessário do caminhar do tempo. Quer-se fazer o paraíso individual aqui, hoje, sem entraves morais, extirpando-se a dor. A ideologia do progresso intensifica-se, pois seu poder não é mais difuso ou concentrado, mas integrado. A tal ponto que, nenhuma leitura diferente do transcorrer histórico seja sequer concebível. Aquilo que existe já não tem necessidade de ser falado.
Talvez, a representação mais clara da presença da ideologia do progresso seja a maneira como olhamos para o passado com desdém. São frases comuns no debate público: “em pleno século XXI...”, “as coisas evoluem”, “parece coisa do século passado”, etc. Olha-se para o passado como um tempo não memorioso de barbáries, rudezas, e coisas indesejáveis. Alguns sequer imaginam como poderia viver há três ou quinze séculos. As pessoas continuam crendo, mesmo sem acreditar num final paradisíaco da história, que o mundo está em evolução.
O mundo moderno, a democracia, a era dos direitos, a “inclusão social”, é visto numa linha de conquistas da humanidade, encaixando-se as novas batalhas culturais por inclusão nesse processo. Não faltam cientistas políticos para proclamarem: daqui a cinquenta anos, esse será o marco da conquista de tal classe por direitos. O mundo está em progresso. O progredir das leis.
Não se pensa mais em futuro glorioso, por que ele já está INTEGRADO ao nosso senso comum. Esse futuro promissor deixou de ser outro mundo que desejamos, e passou a ser este mundo que já temos. Contra a extensão temporal, temos agora a intensidade, e por isto, a busca individual pelo prazer. O paraíso é nesse mundo e agora, e não em outro totalmente diferente lá na frente. A busca é individual. A ideologia do progresso está integrada em todos os elementos de nossa sociedade globalizada. Dessa maneira, fica mais fácil perceber nossa sentença introdutória: vivenciamos uma crise espiritual e material com a extrapolação do moderno, e não com sua quebra.
O que poucos imaginam é que talvez não vivamos tão bem assim. O mundo moderno impõe um número de obrigações materiais (cada vez mais crescentes) que seria inadmissível para um homem que vivesse no Século X. Fora isto, nunca se viu tanta pressão do meio social. Ter uma profissão, ter uma vida de classe média, obter tais objetos, ter filhos, proporcionar aos filhos tal padrão, ganhar respeito. Expectativas depositadas em qualquer criança desde o primeiro segundo da descoberta da fecundação. Junto com elas, crescem desde cedo as obrigações: aulas de inúmeras línguas, horários para aula de música, escola, etc. Um conjunto de pressões externas ao ser eu, impostas pela sociedade, que nem de longe se equipara a atmosfera de liberdade que se desfrutava na antiguidade ou idade média.
O homem vai perdendo seu equilíbrio emocional, por que há uma cisão entre o seu eu interior e o que se deve fazer. É um paradoxo da modernidade e da modernização que, ao mesmo tempo de que o homem domina mais e mais a natureza e obtêm conquistas técnicas formidáveis, encontra-se submetido a um forte estado de privação, cheio de pressões e exigências. Não há melhor, nem pior. Se obtivermos importantes conquistas materiais com o mundo moderno, também perdemos muitas coisas. Uma simples desobediência ao relógio pode destruir sua vida. Hora perdida pode significar perda do emprego, e este, ausência, expulsão da convivência com um círculo de colegas ou amigos de trabalho. Um simples relógio pode te privar de uma rede de conexões sociais, levando-te para o ostracismo.
Ao contrário do que se pensa, o peso da tradição era mais um cimento do meio social do que um poder obsessivo, sendo formado por um conjunto pequeno de imposições microssociais. Buscando o prazer, tendo a felicidade como dever, sendo achatado pelo excesso de direitos e deveres e de imposições sociais e materiais: eis, o diagnóstico da loucura atual. Com isto, não queremos dizer que viver na Roma invadida pelos bárbaros seja melhor ou pior do que temos hoje. Simplesmente são diferentes. O tempo circula, e a intensidade varia. É próprio da ideologia do progresso crer que nossa vida está cada vez melhor, com instituições aperfeiçoadas, com quebras de preconceito, e tudo mais. O mito croceano nada nos revela, senão uma progressão jurídica, ao invés de uma progressão na história social. Mas este é um assunto que deixaremos para depois.
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