terça-feira, 30 de setembro de 2014

Notas sobre mais uma eleição que não foi.

I

Desde a redemocratização, apenas na eleição de 1989 tivemos dissenso na substância dos problemas levantados, ainda que, de maneira muito superficial. De um lado, Lula, Brizola, Roberto Freire e Mario Covas defendiam propostas diferentes num mesmo campo da política; e, do outro lado, Ronaldo Caiado, Afif Domingos, Aureliano Chaves, Fernando Collor, Paulo Maluf.  Após o fracasso do governo Collor, e a passagem da social-democracia ao campo do liberalismo social num contexto de fracasso e desmonte do estado de bem-estar social, nossas eleições ficaram marcadas por uma polarização de pouca substância entre tucanos e petistas.

Neste contexto, as questiúnculas tornaram-se centrais. E a disputa pelo poder (inerente a política) predominou sobre as discordâncias. O candidato petista criticava as privatizações, o seu adversário não discordava (apenas contextualizava a missão do seu partido nos anos 90). O candidato petista criticava o "conservadorismo" e pedia um estado transformador da sociedade, o seu adversário não discordava tanto assim. Em 2010, estavam presentes nos debates: a candidata do governo petista (Dilma Rousseff), dois ex-petistas (Marina Silva e Plínio de Arruda), e um tucano (José Serra) reconhecido como o principal defensor da tese de mais estado na economia dentro do seu partido. Todo dissenso produzido no processo eleitoral veio da sociedade e dos seus valores hegemônicos. Mas, a candidatura de oposição ao PT pouco conseguiu captar disto por concordar com as teses do seu adversário neste campo.

Em 2014, o processo eleitoral é ainda mais oco. A sociedade parece cansada e incapaz de impor dissensos que há habitam para as candidaturas. Por sua vez, os candidatos nanicos presentes nos debates estereotipam posições, criando um "discurso enlatado" para nichos eleitorais, em busca de qualquer deputado a mais no Congresso.

Sem um dissenso bem articulado entre os principais candidatos, o processo eleitoral de escolha do seu representante perde um pouco da sua razão de ser. É bom lembrar que o consenso não deve ser criado por políticos ou partidos em busca do voto, mas pela sociedade civil quando elege uma representação tão diversa quanto ela. Após a eleição, os representantes eleitos devem buscar um consenso mínimo que faça as instituições caminharem dentro da ordem. Na eleição, partidos e políticos devem oferecer dissenso, diferenças na maneira de enxergar o mundo, num embate civilizado de propostas, respeitando a ordem democrática.

II

TODOS SÃO IGUAIS, MAS UNS SÃO MAIS IGUAIS DO QUE OS OUTROS. As falas de Levy Fidelix dirigidas aos homossexuais foram ofensivas, preconceituosas e intolerantes. Dito isto, não me causa espanto a reação de certos grupos que estão mais preocupados em cercear a liberdade de expressão, criando um estado de paranoia social e de novilíngua, do que com o efetivo convencimento. Estufam o peito para falar em democracia, diálogo, Hannah Arendt, mas são incapazes de perceber a expulsão do objeto no debate público: só encontramos sujeitos. Esta ânsia por aprovação ou repulsa imediata significa o reflexo animalizante em se identificar com um grupo em detrimento a outro. Assim, a histeria se transformou num sinal de reconhecimento grupal. E só neste estado de completa imbecilidade podemos naturalizar a intolerância de outros candidatos, pois estas são admitidas pelo establishment intelectual do país e pela militância. É a intolerância dos tolerantes.

Pois bem, Luciana Genro, essa fina flor da imbecilidade humana, pode desfilar preconceitos grosseiros contra empresários, banqueiros, agricultores e evangélicos. E os militantes do seu partido podem queimar bandeiras de Israel e dos Estados Unidos, cuspir na cara dos milicos, desrespeitar os religiosos em seus templos. Mas isto não é intolerância. Todos são iguais, mas uns são mais iguais do que os outros.

José Maria, Rui Costa Pimenta e Mauro Iasi podem defender abertamente a violência revolucionária, a expropriação de todos os bens da "burguesia", o governo do proletariado em armas. Mas isto não é intolerância. Todos são iguais, mas uns são mais iguais do que os outros.

O engraçadinho e autêntico Eduardo Jorge pode falar do feto como um parasita, onde sua única função é levar ao óbito mulheres que querem matar seu próprio filho. E pode, inclusive, discursar como 'salvador do mundo', com todos os delírios inerentes ao catastrofismo ecológico de hoje. Mas isto não é intolerância. Todos são iguais, mas uns são mais iguais do que os outros.

Neste espetáculo mambembe, não espanta a reação histérica dos que são tão intolerantes quanto Levy (só que com outras identidades), naquele ar de indignação fingida, que apenas revela a preocupação em falar a linguagem do seu grupo. É a boa e velho ideologia: diluída, volátil, atmosférica.

No entanto, defendo o direito de todos eles se expressarem. Não é calando os vulgares que iremos ter mais democracia. Deles só nos livramos quando podem abertamente se expressar.

III

Quando as pessoas compreenderem que socialismo NÃO é o contrário de capitalismo, mas sim, de democracia; tornando o capitalismo infinitamente mais destrutivo do que na democracia liberal; vai dá pra conversar sobre a situação da América Latina.

O Socialismo é um esquema de poder, e não um sistema de produção, aonde poder político e poder econômico tornam-se coincidentes, e o Estado tende a engolir a sociedade civil; por isto, os agentes econômicos (empresas, famílias etc) são controladas, nem sempre de maneira direta. Não há lógica revolucionária que não aponte para a concentração de poder.

IV

Marina não sofreu metade da artilharia petista contra o Serra em 2010, e já caiu 10% em duas semanas e meia. Para piorar, ela não pode reagir aos ataques, pois não fez um acerto de contas com o seu passado, e continua a comungar boa parte das teses históricas de seu antigo partido. A tal ponto que, em entrevista ao Roda Viva em 2013, disse que a Rede deve cumprir a função que o PT teve nos anos 70 e 80. Criticar o PT e Lula na raiz seria como criticar a si mesma. E sem fazer isto, ganhar da Dilma será impossível.

Causa-me espanto que com esta curva descendente e com dificuldades inerentes a candidatura (não terá o voto do agronegócio, um partido ocupando o lugar mediador das instituições políticas, democracia de alta intensidade com grupos de pressões, etc.) alguém ainda ache a sua candidatura a mais competitiva para bater Dilma. Não, não é. Ela já perdeu essa eleição.

V

Leio que Marina Silva vai governar com os melhores. E quem é o melhor do PT? Eduardo Suplicy. Aquele senador paulista que labutou arduamente para que o presidente Lula concedesse asilo político a Cesare Battisti, comunista condenado pela justiça italiana por dois assassinatos e participação noutros dois. Até a extrema esquerda italiana ficou estupefata com a decisão do ex-presidente. Mas, temos que ouvir e ler que o PT é moderado por fazer alianças (como qualquer stalinista da vida, que fazia acordos até com a democracia-cristã) ou por ter criado um capitalismo de estado que torna a burguesia nacional dependente, e escorchada por um imenso esquema de propinas e favores (como qualquer socialismo da vida). E para não dizer que não falei das flores: Marina não quer participar de um partido, ganhar uma eleição com ideias específicas, mas encarnar a própria mediação política, que deveria ser impessoal e institucional. Ela tem a monstruosa ideia de fazer do seu partido: o mediador dos conflitos. Marina saiu do PT, mas o PT não saiu dela. Ou, talvez, o Brasil tenha virado o PT sem perceber. Ecos de insatisfação tomam corpo, mas são irrelevantes se não atingem o centro do poder nacional: o governo federal. Na Venezuela, oposição também controla vários estados.

VI
 
Vem aí mais uma eleição, e lá vamos nós mais uma vez votar numa urna eletrônica, sem qualquer registro físico do voto. Não sei se há, haverá ou já houve fraude eleitoral, pelo simples fato de que é impossível saber. Só no Brasil e na Índia se usa urna eletrônica de primeira geração (sem voto impresso e sem auditoria do resultado). Na Alemanha, nos Estados Unidos, e na Holanda, este sistema foi proibido e declarado inconstitucional. É incompreensível a teimosia do TSE em não adotar a urna eletrônica de segunda ou terceira geração.

VII

Todos esses jornalistas que hoje não passam de símbolos da venalidade petista (Paulo Moreira Leite, Tereza Cruvinel, Franklin Martins, Paulo Henrique Amorim, Luís Nassif, Kennedy Alencar, Luis Carlos Azenha) já ocuparam postos fundamentais nas principais empresas de jornalismo. Diz algo a respeito do que se tornou o chamado "debate público" numa campanha eleitoral.

VIII

Sou nordestino, e não me sinto ofendido com nenhuma piadinha. Não dói. E se quisesse responder tudo que diria era um 'vai se foder' ou outra piadinha, e estaria tudo certo. Nada de processo, sem vitimização. Qualquer xingamento, preconceito bocó, ou coisa do gênero é brincadeira de criança perto da imoralidade de um linchamento público. Há mais honra e dignidade em qualquer guerra do que nesta invenção moderna: a união de todas as pessoas para bater em uma única, tendo como disfarce o bom mocismo.

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Ron Paul no Brasil: a direita que insiste em não crescer

Pelo que lemos na arena das arengas ideológicas, o grande sonho do brasileiro deve ser se tornar adulto. Só isto explica esta tara tupiniquim de falar em nome da liberdade (à direita e à esquerda) e de colocar a vontade acima da verdade, revelando um desejo pueril (típico da adolescência) em se autoafirmar constantemente perante a ordem e os limites da realidade.

Para reconquistar espaço no debate cultural, parte da nova direita brasileira promove e traz ao país, Ron Paul, que como qualquer ideólogo fala naquele tom celestial de guru intelectual. Ele é o dono da receita de bolo que nos libertará: o libertarianismo. Sugestivo. Ele não percebe que ao prescrever uma receita de sociedade (baseada nas liberdades civis como ideia absoluta), bastando que a sigamos para conquistar a prosperidade, já está limitando a liberdade alheia, mesmo de maneira indireta. Pois, uma escolha sempre representa certas perdas.

A palavra sociedade vem do latim societas, uma espécie de associação entre as pessoas para melhor convívio, compartilhando valores, costumes, hábitos. Em síntese, significa um grupo de pessoas vivendo juntas numa comunidade racionalmente organizada. Logo, a base da sociedade é a limitação da liberdade individual em prol de um bem comum, a vida em conjunto. E a tirania é exatamente a liberdade ilimitada (dentro das possibilidades da estrutura da realidade) de um indivíduo que oprime todas as outras pessoas na consecução dos seus desejos.

Então, se você coloca como princípio organizacional da sociedade, o princípio absoluto das liberdades civis individuais, há na realidade uma contradição patente. De tal modo que, será impossível manter esta sociedade, e a liberdade se tornará o inverso de si mesmo, a tirania. Portanto, o princípio da liberdade não pode ser o elemento formador da sociedade, e não deve estar acima da coesão social. Na esfera civil, ela tem de ser limitada pelo princípio da justiça (dar a cada um o que é seu). Devendo haver um equilíbrio tensional entre as liberdades civis, de modo que esta não ameace a própria ordem e a paz social.

Deste modo, falar em nome da liberdade é uma verborragia inútil. Pois, a liberdade é um conceito limitado e não um princípio geral (como o princípio da incerteza de Heinsenberg), e está sendo sempre aplicada de maneira relativa e relacional. Por não estar excluída das ambivalências da vida, torna-se uma norma de aplicação prática, limitada por sua própria natureza. Se eu dou ao indivíduo a possibilidade de se autodestruir e dou a outros indivíduos a possibilidade disto incentivar (como na legalização das drogas antissociais), esta liberdade pode se voltar contra as bases da organização social, correndo-a por dentro, e por conseguinte, destruindo a liberdade de todos os outros. Se a liberdade não é limitada num equilíbrio tensional, a vida de toda sociedade está em perigo. Um atentado terrorista, por exemplo, pode deixar de ser evitado se os investigadores não puderem utilizar certos métodos de urgência.

Compreendendo estes aspectos, fica mais fácil entender por que a argumentação de Ron Paul, o republicano mais querido pelos democratas, não está longe de toda pauta cultural do esquerdismo mundial. Como a esquerda pós-68, Ron Paul se esquece que não se pode alcançar um estado ideal, sem limitações das possibilidades da vontade individual, mesmo quando esta aparentemente não me diga respeito. Como ela, Paul quer transformar os indivíduos em seres hedonistas, individualistas, profundamente egoístas, sendo tiraninhos de pequenos reinos individuais, ameaçando a sociedade inteira, pois o Estado não pode interferir, nem limitar certas liberdades civis.

Como um ideólogo doutrinador qualquer, o sr. Ron Paul está preocupado em dizer como a sociedade deveria ser. No entanto, o sr. Ron Paul é incapaz de olhar para as perdas e as consequências da aplicação absoluta de seu conjunto de ideias gerais. É incapaz de fazer um exame sistêmico e estrutural da realidade material e histórica sob a qual está assentado e terá de lidar. O sr. Ron Paul, ao modo brasileiro, não analisa questões específicas, as suas nuances, as curvas do fazer histórico; mas discute doutrinas, ideias gerais, reafirmando as suas num esquema hipotético, tão fácil de derrubar quanto a de qualquer ideologia. Em especial, um ponto me chama a atenção: o seu isolacionismo em termos de política externa.

Se os neocons são adolescentes zombeteiros que querem consertar o mundo e universalizar a democracia ocidental por decreto da força, como se a realidade fosse facilmente moldável; os isolacionistas são adolescentes assustados com o mundo fora de si, achando que podem brincar alegremente, desfrutando de toda liberdade em suas terras, enquanto o pau quebra no mundo inteiro, como isto não fosse um dia lhe atingir ou não lhe dissesse respeito.

No complexo jogo de xadrez geopolítico de hoje, Putin e a aliança eurasiana  ameaçam cada vez mais o raio de influência das democracias liberais do Ocidente, inclusive, em seu próprio habitat. No Oriente Médio, a confusão impera, e o grupo jihadista, ISIS, domina um território portentoso e pode avançar sobre o dos curdos, abundante de petróleo. Qual a consequência para o mundo se o grupo terrorista ISIS obter grande poder político e financeiro? E mais: o mundo ficará passivo perante o genocídio de cristãos, curdos, yazidis, e outras minorias? Na Europa, sob as ruínas que restam da sociedade corroída, discute-se sobre os males causados pelo multiculturalismo. João Pereira Coutinho, na Folha, nos expõe quase que semanalmente tais problemas. Grupos muçulmanos falam abertamente em islamizar o velho continente. E como isto tudo já não bastasse, avisa o prof. Gunther Rudzit que o mundo multipolar pode ser ainda mais perigoso do que o bipolar.

No entanto, o sr. Ron Paul afirma que tudo ficará bem para o seu país (dane-se o mundo), se os americanos reclusarem-se em sua casa (como se não houvesse problemas com o multiculturalismo). Eis a mensagem do guru: não se preocupem em defender o seu território, nem evite genocídios nos países dos outros, que tudo dará certo. A quem interessa deixar os Estados Unidos em posição de total fraqueza, exposto a ação de seus inimigos? Propor a paz universal nas chaves isolacionistas já soa ridículo perante o conhecimento de que a base de todas as guerras feitas pela humanidade foram por território; que dirá então, num mundo globalizado, complexo, interligado, de diminuta da soberania nacional, não passando de exibicionice de sua própria loucura doutrinal.

Ao trazer Ron Paul, o libertário que os esquerdistas adoram, a nova direita - monstruosamente inculta a respeito das teses de seus adversários - pretende advogar a "liberdade sem concessão" na luta cultural contra a esquerda? Agindo assim, provam merecer o riso dos seus adversários, ao mesmo tempo em que, colocam mais água nos seus moinhos de vento, nos trazendo, tal como a esquerda, mais uma receita de mundo melhor. De minha parte, sou tão inimigo da esquerda radical quanto da direita que ama Ron Paul.