segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Pequeno Glossário de Eric Voegelin para Entender o Debate Público

Em pleno transcorrer de uma campanha eleitoral, não há de passar por despercebido certos cacoetes mentais que, por sua vez, expressam as iniquidades da classe intelectual deste país. O debate público é permeado por uma verborragia infernal, por discursos ausentes de realidade, propostas genéricas, e por uma crença messiânica na simples renovação, ou do seu inverso, na simples continuidade. Alguns termos cruciais da filosofia de Eric Voegelin nos pode dar luz sobre a raiz de tais problemas. Vejamos alguns deles, a partir do livro de Michael Federici: "A Restauração da Ordem".

FEDERICI, Michael P. A Restauração da Ordem. São Paulo: É Realizações, 2011. 1ª Edição. (p. 189-211).

Apocalipse Metastático - A transformação da realidade através de um ato de fé. Voegelin associa a este conceito a ideia de mágica. 

Consciência de Época - Conceito que Voegelin emprega para descrever a ideia de que está surgindo uma época nova e final que está terminando uma época antiga. Ele atribui ao Iluminismo uma consciência de época que está relacionada a Joaquim de Flora no século XIII. Flavio Biondo é outro exemplo de pensador que tem consciência de época porque ele dividiu a história em antiga, medieval e moderna. O movimento, entretanto, não alcança o ponto de significância política e revolução social senão até o século XVIII. A consequência inclui o "significado perdido da existência cristã" e a ascensão dos movimentos políticos de massa.

Cosmion - Termo de Voegelin para o "pequeno mundo de ordem" criado por uma sociedade através de seus símbolos auto-interpretativos e experiências correspondentes. O cosmion é defendido e racionalizado de uma maneira que produz registros históricos que podem ser analisados para desvelar a história das ideias. O cosmion é uma reflexão de uma ordem mais ampla e mais alta que implica a necessidade de subordinar a vontade humana à realidade transcendente. Regimes totalitários, por reconhecerem apenas a realidade intramundana, substituem o cosmion pelo cosmos.

Deformação - A destruição da alma pelo fechamento existencial ou pela corrupção ideológica. Equivalente a desculturação. A deformação pode ocorrer quando a verdade diferenciada é deformada em dogmas ou doutrinas ideológicas. Por exemplo, a noção de Marx de "emancipação" é uma deformação da ideia do Evangelho de metanoia (conversão espiritual verdadeira).

Desespiritualização - O relegar à vida privada assuntos espirituais e símbolos. À desespiritualização segue-se a respiritualização: o cristianismo é substituído por ideologias modernas que contém uma semelhança com o cristianismo, mas são faltas de sua substância espiritual.

Ecúmena - A tentativa de criar uma comunidade universal da humanidade, seja num sentido espiritual, seja num sentido imperial.

Escatologia - Especulação acerca do destino final e último do homem. Há pathos escatológico em Marx porque ele afirma ter descoberto o destino do homem como a perfeição da natureza na história. Intimamente relacionado ao milenarismo. Ideologias gnósticas e utópicas como o comunismo e o nacional-socialismo acreditam que é possível imanentizar o eschaton (trazer o céu a terra).

Fé Metastática - Fés metastáticas tentam transformar radicalmente o ser, a estrutura da realidade, a si mesmas. Essas crenças utópica são escapistas, pois sugerem que os seres humanos podem sair do entremeio e criar sociedades que encontram uma maneira de eliminar a tensão da existência.

Fechamento Narcisista - Termo que Voegelin emprega para descrever a condição espiritual de uma alma fechada que se revolta contra o fundamento transcendente do ser, ao colocar o homem no lugar do fundamento divino.

Fragmentação - A tendência comum de ideólogos de tomar uma parte da realidade, reduzi-la a uma doutrina ou proposição, e considerá-la o todo da realidade.

Gnosticismo - Ideologia que afirma o conhecimento absoluto da realidade. Segundo Voegelin, caracteriza o mundo moderno. É engendrada pela insatisfação com a estrutura da existência como ela é e pela crença de que uma nova ordem pode ser criada pela execução de um plano revolucionário de ação, baseado na gnose. A nova ordem representa uma transformação da natureza humana e da própria estrutura de existência.

Ideologias Secundárias - Ideologias como conservadorismo ou tradicionalismo que são criadas para preservar a ordem existente de movimentos radicais como jacobinismo ou marxismo.

Libido Dominandi - A vontade de poder. Uma característica definidora dos gnósticos, que, afinal, revelam que por trás de suas proposições ideológicas jaz a luxúria pelo poder e domínio.

Paradoxo da Modernidade - Progresso e declínio concomitantes. O progresso é na área da ciência e da tecnologia, que levou a níveis notáveis de conforto material, educação e saúde. No entanto, esse progresso se faz à custa do declínio espiritual. Guerras destrutivas, materialismo ideologicamente motivado e alienação engendraram um corpo de literatura sobre o declínio do Ocidente.

Páthos - A paixão e a comoção que estão associadas com a vida humana e a ansiedade do entremeio. Doutrinas ideológicas criam um clima cultural que compele o filósofo a apelar ao páthos como maneira de penetrar a verdade da existência que todos os seres humanos compartilham na experiência.

Princípio Antropológico de Platão - A interpretação da ordem social e existencial. Esta ideia está presente na República, obra na qual Platão faz conexões entre a ordem da alma e a ordem da pólis. Se a pólis é o homem (a alma) escritas com letras maiúsculas, então as ordens social e política dependem dos líderes que sintonizaram sua alma com o fundamento. A degeneração do regime é, afinal, uma degeneração do caráter moral na classe reinante. Por implicação, instituições sociais e políticas são incapazes de manter uma ordem justa sem líderes de caráter moral sadio.

Religiosidade Intramundana - Uma nova religião que emerge do iluminismo. O homem não é ordenado de cima pela graça eterna de Deus, mas de baixo, pelo interesse próprio e pelo cálculo utilitário.


terça-feira, 30 de setembro de 2014

Notas sobre mais uma eleição que não foi.

I

Desde a redemocratização, apenas na eleição de 1989 tivemos dissenso na substância dos problemas levantados, ainda que, de maneira muito superficial. De um lado, Lula, Brizola, Roberto Freire e Mario Covas defendiam propostas diferentes num mesmo campo da política; e, do outro lado, Ronaldo Caiado, Afif Domingos, Aureliano Chaves, Fernando Collor, Paulo Maluf.  Após o fracasso do governo Collor, e a passagem da social-democracia ao campo do liberalismo social num contexto de fracasso e desmonte do estado de bem-estar social, nossas eleições ficaram marcadas por uma polarização de pouca substância entre tucanos e petistas.

Neste contexto, as questiúnculas tornaram-se centrais. E a disputa pelo poder (inerente a política) predominou sobre as discordâncias. O candidato petista criticava as privatizações, o seu adversário não discordava (apenas contextualizava a missão do seu partido nos anos 90). O candidato petista criticava o "conservadorismo" e pedia um estado transformador da sociedade, o seu adversário não discordava tanto assim. Em 2010, estavam presentes nos debates: a candidata do governo petista (Dilma Rousseff), dois ex-petistas (Marina Silva e Plínio de Arruda), e um tucano (José Serra) reconhecido como o principal defensor da tese de mais estado na economia dentro do seu partido. Todo dissenso produzido no processo eleitoral veio da sociedade e dos seus valores hegemônicos. Mas, a candidatura de oposição ao PT pouco conseguiu captar disto por concordar com as teses do seu adversário neste campo.

Em 2014, o processo eleitoral é ainda mais oco. A sociedade parece cansada e incapaz de impor dissensos que há habitam para as candidaturas. Por sua vez, os candidatos nanicos presentes nos debates estereotipam posições, criando um "discurso enlatado" para nichos eleitorais, em busca de qualquer deputado a mais no Congresso.

Sem um dissenso bem articulado entre os principais candidatos, o processo eleitoral de escolha do seu representante perde um pouco da sua razão de ser. É bom lembrar que o consenso não deve ser criado por políticos ou partidos em busca do voto, mas pela sociedade civil quando elege uma representação tão diversa quanto ela. Após a eleição, os representantes eleitos devem buscar um consenso mínimo que faça as instituições caminharem dentro da ordem. Na eleição, partidos e políticos devem oferecer dissenso, diferenças na maneira de enxergar o mundo, num embate civilizado de propostas, respeitando a ordem democrática.

II

TODOS SÃO IGUAIS, MAS UNS SÃO MAIS IGUAIS DO QUE OS OUTROS. As falas de Levy Fidelix dirigidas aos homossexuais foram ofensivas, preconceituosas e intolerantes. Dito isto, não me causa espanto a reação de certos grupos que estão mais preocupados em cercear a liberdade de expressão, criando um estado de paranoia social e de novilíngua, do que com o efetivo convencimento. Estufam o peito para falar em democracia, diálogo, Hannah Arendt, mas são incapazes de perceber a expulsão do objeto no debate público: só encontramos sujeitos. Esta ânsia por aprovação ou repulsa imediata significa o reflexo animalizante em se identificar com um grupo em detrimento a outro. Assim, a histeria se transformou num sinal de reconhecimento grupal. E só neste estado de completa imbecilidade podemos naturalizar a intolerância de outros candidatos, pois estas são admitidas pelo establishment intelectual do país e pela militância. É a intolerância dos tolerantes.

Pois bem, Luciana Genro, essa fina flor da imbecilidade humana, pode desfilar preconceitos grosseiros contra empresários, banqueiros, agricultores e evangélicos. E os militantes do seu partido podem queimar bandeiras de Israel e dos Estados Unidos, cuspir na cara dos milicos, desrespeitar os religiosos em seus templos. Mas isto não é intolerância. Todos são iguais, mas uns são mais iguais do que os outros.

José Maria, Rui Costa Pimenta e Mauro Iasi podem defender abertamente a violência revolucionária, a expropriação de todos os bens da "burguesia", o governo do proletariado em armas. Mas isto não é intolerância. Todos são iguais, mas uns são mais iguais do que os outros.

O engraçadinho e autêntico Eduardo Jorge pode falar do feto como um parasita, onde sua única função é levar ao óbito mulheres que querem matar seu próprio filho. E pode, inclusive, discursar como 'salvador do mundo', com todos os delírios inerentes ao catastrofismo ecológico de hoje. Mas isto não é intolerância. Todos são iguais, mas uns são mais iguais do que os outros.

Neste espetáculo mambembe, não espanta a reação histérica dos que são tão intolerantes quanto Levy (só que com outras identidades), naquele ar de indignação fingida, que apenas revela a preocupação em falar a linguagem do seu grupo. É a boa e velho ideologia: diluída, volátil, atmosférica.

No entanto, defendo o direito de todos eles se expressarem. Não é calando os vulgares que iremos ter mais democracia. Deles só nos livramos quando podem abertamente se expressar.

III

Quando as pessoas compreenderem que socialismo NÃO é o contrário de capitalismo, mas sim, de democracia; tornando o capitalismo infinitamente mais destrutivo do que na democracia liberal; vai dá pra conversar sobre a situação da América Latina.

O Socialismo é um esquema de poder, e não um sistema de produção, aonde poder político e poder econômico tornam-se coincidentes, e o Estado tende a engolir a sociedade civil; por isto, os agentes econômicos (empresas, famílias etc) são controladas, nem sempre de maneira direta. Não há lógica revolucionária que não aponte para a concentração de poder.

IV

Marina não sofreu metade da artilharia petista contra o Serra em 2010, e já caiu 10% em duas semanas e meia. Para piorar, ela não pode reagir aos ataques, pois não fez um acerto de contas com o seu passado, e continua a comungar boa parte das teses históricas de seu antigo partido. A tal ponto que, em entrevista ao Roda Viva em 2013, disse que a Rede deve cumprir a função que o PT teve nos anos 70 e 80. Criticar o PT e Lula na raiz seria como criticar a si mesma. E sem fazer isto, ganhar da Dilma será impossível.

Causa-me espanto que com esta curva descendente e com dificuldades inerentes a candidatura (não terá o voto do agronegócio, um partido ocupando o lugar mediador das instituições políticas, democracia de alta intensidade com grupos de pressões, etc.) alguém ainda ache a sua candidatura a mais competitiva para bater Dilma. Não, não é. Ela já perdeu essa eleição.

V

Leio que Marina Silva vai governar com os melhores. E quem é o melhor do PT? Eduardo Suplicy. Aquele senador paulista que labutou arduamente para que o presidente Lula concedesse asilo político a Cesare Battisti, comunista condenado pela justiça italiana por dois assassinatos e participação noutros dois. Até a extrema esquerda italiana ficou estupefata com a decisão do ex-presidente. Mas, temos que ouvir e ler que o PT é moderado por fazer alianças (como qualquer stalinista da vida, que fazia acordos até com a democracia-cristã) ou por ter criado um capitalismo de estado que torna a burguesia nacional dependente, e escorchada por um imenso esquema de propinas e favores (como qualquer socialismo da vida). E para não dizer que não falei das flores: Marina não quer participar de um partido, ganhar uma eleição com ideias específicas, mas encarnar a própria mediação política, que deveria ser impessoal e institucional. Ela tem a monstruosa ideia de fazer do seu partido: o mediador dos conflitos. Marina saiu do PT, mas o PT não saiu dela. Ou, talvez, o Brasil tenha virado o PT sem perceber. Ecos de insatisfação tomam corpo, mas são irrelevantes se não atingem o centro do poder nacional: o governo federal. Na Venezuela, oposição também controla vários estados.

VI
 
Vem aí mais uma eleição, e lá vamos nós mais uma vez votar numa urna eletrônica, sem qualquer registro físico do voto. Não sei se há, haverá ou já houve fraude eleitoral, pelo simples fato de que é impossível saber. Só no Brasil e na Índia se usa urna eletrônica de primeira geração (sem voto impresso e sem auditoria do resultado). Na Alemanha, nos Estados Unidos, e na Holanda, este sistema foi proibido e declarado inconstitucional. É incompreensível a teimosia do TSE em não adotar a urna eletrônica de segunda ou terceira geração.

VII

Todos esses jornalistas que hoje não passam de símbolos da venalidade petista (Paulo Moreira Leite, Tereza Cruvinel, Franklin Martins, Paulo Henrique Amorim, Luís Nassif, Kennedy Alencar, Luis Carlos Azenha) já ocuparam postos fundamentais nas principais empresas de jornalismo. Diz algo a respeito do que se tornou o chamado "debate público" numa campanha eleitoral.

VIII

Sou nordestino, e não me sinto ofendido com nenhuma piadinha. Não dói. E se quisesse responder tudo que diria era um 'vai se foder' ou outra piadinha, e estaria tudo certo. Nada de processo, sem vitimização. Qualquer xingamento, preconceito bocó, ou coisa do gênero é brincadeira de criança perto da imoralidade de um linchamento público. Há mais honra e dignidade em qualquer guerra do que nesta invenção moderna: a união de todas as pessoas para bater em uma única, tendo como disfarce o bom mocismo.

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Ron Paul no Brasil: a direita que insiste em não crescer

Pelo que lemos na arena das arengas ideológicas, o grande sonho do brasileiro deve ser se tornar adulto. Só isto explica esta tara tupiniquim de falar em nome da liberdade (à direita e à esquerda) e de colocar a vontade acima da verdade, revelando um desejo pueril (típico da adolescência) em se autoafirmar constantemente perante a ordem e os limites da realidade.

Para reconquistar espaço no debate cultural, parte da nova direita brasileira promove e traz ao país, Ron Paul, que como qualquer ideólogo fala naquele tom celestial de guru intelectual. Ele é o dono da receita de bolo que nos libertará: o libertarianismo. Sugestivo. Ele não percebe que ao prescrever uma receita de sociedade (baseada nas liberdades civis como ideia absoluta), bastando que a sigamos para conquistar a prosperidade, já está limitando a liberdade alheia, mesmo de maneira indireta. Pois, uma escolha sempre representa certas perdas.

A palavra sociedade vem do latim societas, uma espécie de associação entre as pessoas para melhor convívio, compartilhando valores, costumes, hábitos. Em síntese, significa um grupo de pessoas vivendo juntas numa comunidade racionalmente organizada. Logo, a base da sociedade é a limitação da liberdade individual em prol de um bem comum, a vida em conjunto. E a tirania é exatamente a liberdade ilimitada (dentro das possibilidades da estrutura da realidade) de um indivíduo que oprime todas as outras pessoas na consecução dos seus desejos.

Então, se você coloca como princípio organizacional da sociedade, o princípio absoluto das liberdades civis individuais, há na realidade uma contradição patente. De tal modo que, será impossível manter esta sociedade, e a liberdade se tornará o inverso de si mesmo, a tirania. Portanto, o princípio da liberdade não pode ser o elemento formador da sociedade, e não deve estar acima da coesão social. Na esfera civil, ela tem de ser limitada pelo princípio da justiça (dar a cada um o que é seu). Devendo haver um equilíbrio tensional entre as liberdades civis, de modo que esta não ameace a própria ordem e a paz social.

Deste modo, falar em nome da liberdade é uma verborragia inútil. Pois, a liberdade é um conceito limitado e não um princípio geral (como o princípio da incerteza de Heinsenberg), e está sendo sempre aplicada de maneira relativa e relacional. Por não estar excluída das ambivalências da vida, torna-se uma norma de aplicação prática, limitada por sua própria natureza. Se eu dou ao indivíduo a possibilidade de se autodestruir e dou a outros indivíduos a possibilidade disto incentivar (como na legalização das drogas antissociais), esta liberdade pode se voltar contra as bases da organização social, correndo-a por dentro, e por conseguinte, destruindo a liberdade de todos os outros. Se a liberdade não é limitada num equilíbrio tensional, a vida de toda sociedade está em perigo. Um atentado terrorista, por exemplo, pode deixar de ser evitado se os investigadores não puderem utilizar certos métodos de urgência.

Compreendendo estes aspectos, fica mais fácil entender por que a argumentação de Ron Paul, o republicano mais querido pelos democratas, não está longe de toda pauta cultural do esquerdismo mundial. Como a esquerda pós-68, Ron Paul se esquece que não se pode alcançar um estado ideal, sem limitações das possibilidades da vontade individual, mesmo quando esta aparentemente não me diga respeito. Como ela, Paul quer transformar os indivíduos em seres hedonistas, individualistas, profundamente egoístas, sendo tiraninhos de pequenos reinos individuais, ameaçando a sociedade inteira, pois o Estado não pode interferir, nem limitar certas liberdades civis.

Como um ideólogo doutrinador qualquer, o sr. Ron Paul está preocupado em dizer como a sociedade deveria ser. No entanto, o sr. Ron Paul é incapaz de olhar para as perdas e as consequências da aplicação absoluta de seu conjunto de ideias gerais. É incapaz de fazer um exame sistêmico e estrutural da realidade material e histórica sob a qual está assentado e terá de lidar. O sr. Ron Paul, ao modo brasileiro, não analisa questões específicas, as suas nuances, as curvas do fazer histórico; mas discute doutrinas, ideias gerais, reafirmando as suas num esquema hipotético, tão fácil de derrubar quanto a de qualquer ideologia. Em especial, um ponto me chama a atenção: o seu isolacionismo em termos de política externa.

Se os neocons são adolescentes zombeteiros que querem consertar o mundo e universalizar a democracia ocidental por decreto da força, como se a realidade fosse facilmente moldável; os isolacionistas são adolescentes assustados com o mundo fora de si, achando que podem brincar alegremente, desfrutando de toda liberdade em suas terras, enquanto o pau quebra no mundo inteiro, como isto não fosse um dia lhe atingir ou não lhe dissesse respeito.

No complexo jogo de xadrez geopolítico de hoje, Putin e a aliança eurasiana  ameaçam cada vez mais o raio de influência das democracias liberais do Ocidente, inclusive, em seu próprio habitat. No Oriente Médio, a confusão impera, e o grupo jihadista, ISIS, domina um território portentoso e pode avançar sobre o dos curdos, abundante de petróleo. Qual a consequência para o mundo se o grupo terrorista ISIS obter grande poder político e financeiro? E mais: o mundo ficará passivo perante o genocídio de cristãos, curdos, yazidis, e outras minorias? Na Europa, sob as ruínas que restam da sociedade corroída, discute-se sobre os males causados pelo multiculturalismo. João Pereira Coutinho, na Folha, nos expõe quase que semanalmente tais problemas. Grupos muçulmanos falam abertamente em islamizar o velho continente. E como isto tudo já não bastasse, avisa o prof. Gunther Rudzit que o mundo multipolar pode ser ainda mais perigoso do que o bipolar.

No entanto, o sr. Ron Paul afirma que tudo ficará bem para o seu país (dane-se o mundo), se os americanos reclusarem-se em sua casa (como se não houvesse problemas com o multiculturalismo). Eis a mensagem do guru: não se preocupem em defender o seu território, nem evite genocídios nos países dos outros, que tudo dará certo. A quem interessa deixar os Estados Unidos em posição de total fraqueza, exposto a ação de seus inimigos? Propor a paz universal nas chaves isolacionistas já soa ridículo perante o conhecimento de que a base de todas as guerras feitas pela humanidade foram por território; que dirá então, num mundo globalizado, complexo, interligado, de diminuta da soberania nacional, não passando de exibicionice de sua própria loucura doutrinal.

Ao trazer Ron Paul, o libertário que os esquerdistas adoram, a nova direita - monstruosamente inculta a respeito das teses de seus adversários - pretende advogar a "liberdade sem concessão" na luta cultural contra a esquerda? Agindo assim, provam merecer o riso dos seus adversários, ao mesmo tempo em que, colocam mais água nos seus moinhos de vento, nos trazendo, tal como a esquerda, mais uma receita de mundo melhor. De minha parte, sou tão inimigo da esquerda radical quanto da direita que ama Ron Paul.

sábado, 19 de julho de 2014

Na Dialética Mundana, os Anjos Traziam Sopros do Paraíso e dos Desgraçados Fez-se a Redenção: arrependimento e perdão em Magnólia.



“Ao renegar a partida, infestarei de rãs todo seu território”.
Êxodo 8:2
I

“Deixai, ó vós que entrais, toda a esperança!” Nada definiria melhor o inverso de Magnólia do que a porta de entrada do inferno de Dante. O filme Magnólia, ao contrário, trata dos desgraçados em terra. Pois, é na desgraça das circunstâncias, que ainda pode residir o princípio da esperança.

Por isto, o filme começa com uma sucessão de choques gerados em situações estranhas: um suicídio, um assassinato que gera a pena por enforcamento, um filho que antes de se atirar do alto dum prédio carrega a arma que a mãe sempre ameaça o pai. De súbito, fui tomado de tal maneira pela absurdidade das circunstâncias e pela dor gerada, que tive a impressão de estar sendo recepcionado pelas trombetas que soam do inferno. Isto me ocorreu porque a porta de entrada de Magnólia nos causa uma sensação estranha, de incômodo com a miséria da condição humana. E este sentimento prepara o espectador para os próximos movimentos.

Não raramente, nos julgamos detentores de nosso mundo, senhores onipotentes que controlam pequenos reinados individuais, regidos pelo princípio do prazer. Mas, contando casos que versam sobre nossa condição incompleta e dependente dos outros (e do acaso), o filme faz a primeira quebra dessa vaidade, ao mostrar que não estamos no controle da situação. Podemos matar Deus ou negá-lo quantas vezes quisermos, mas nunca teremos o seu lugar. Controlar as circunstâncias e ser dono de sua vida não passa de ilusão. Ilusão de crianças tolas brincando de onipotência.

Desta primeira quebra, decorre uma segunda ainda mais complexa e sutil, onde o sagrado é inserido. Ao final do último caso de coincidências absurdas, o narrador reflete: “Não pode ser simplesmente algo que aconteceu. Não foi mera coincidência, essas coisas estranhas acontecem o tempo inteiro”. Ao negar que cada fato ocorreu em decorrência de pura vontade das partes ou do acaso, um elemento externo aos sujeitos e desconhecido é inserido na narrativa. E nisto, reside o sagrado.

Neste sentido, ao apresentar diversas circunstâncias, motivos, desejos, individualidades; mas todas interligadas, versando profundamente sobre uma única coisa (aquilo que somos) o filme busca unidade no caos e na diferença. E faz isto de maneira irretocável, ao mostrar que, afinal, somos todos humanos, participantes da mesma condição. Assim, nega-se uma visão atomística ou pessoal dos fatos; pois, não há sentido achar que vivemos num vazio, onde tudo que ocorre depende de nós. Eu sou eu e as minhas circunstâncias, dizia Ortega y Gasset. E as minhas circunstâncias estão longe de serem meras escolhas particulares. Coisas estranhas acontecem o tempo inteiro, e essa factuabilidade é ao mesmo tempo determinada e indeterminada. Afinal, se no mistério dessa comunicação e interligação entre os seres humanos e suas escolhas e renúncias dá-se as coisas transcorridas, é também nela que se apresenta – pela própria magia de sua existência – o inapreensível, o que deveria ocorrer e que nos parece estranho, e nos oferece uma oportunidade. Aquilo que costumamos chamar de “acaso”.

Como a flor Magnólia que simboliza a nobreza, a dignidade, a beleza esplêndida, e o amor ao natural; o filme busca o sublime, mas a partir de nossa condição humana, como desgraçada, incompleta e degrada. Assim, Magnólia trata dos fracassos, pois são eles que nos humaniza. É o fracasso que interliga seus personagens e dá unidade a esse caos aparente de possibilidades. O filme explora as fraquezas dos indivíduos, os pequenos e os grandes erros, a ambivalência, o perdão e o arrependimento diante da pungência da percepção moral que todos temos. Mas, se ele começa pelo sofrimento e pela destruição, é para desta condição vermos além, ao querer o seu outro (“é errando que se aprende”). Para disto, extrairmos os belos sentimentos que aparecem ao final (como o amor, a compaixão, a amizade, a lealdade), na busca pela bem-aventurança, e na esperança por uma nova chance.

II

Paul Thomas Anderson, diretor e roteirista, optou por criar uma narrativa em forma de mosaico. A vida dos personagens é apresentada de maneira dinâmica, com várias transições na história de um para o outro, permitindo ao espectador visualizar uma correlação entre todos eles. Todos os sujeitos carregam vários traumas, sendo a maior parte vinda da infância, de tal modo, a se sentirem tão oprimidos em suas vivências, que a única opção viável parece ser desistir.

O primeiro personagem apresentado é TJ Mackey, com sua linguagem da sedução. Seduzir para destruir é a sua máxima. Numa parte, ele nos avisa: “Não vou me desculpar por ser quem eu sou! Sou aquilo que acredito ser. Ficar encarando o passado é não progredir, a coisa mais inútil é o que está atrás de mim!” Ele nega o passado, mas por fraqueza, já que suas recordações doem. Seu pai, Earl Partridge, é dono de uma grande rede de televisão, e abandonou sua mãe mesmo à beira da morte, depois de anos de traições. Earl é casado com Linda, uma mulher muito mais jovem, interesseira, que lhe traia com vários homens, mas que começa a sentir remorso ao ver o esposo fenecendo à beira da morte por causa de um câncer.

Por sua vez, Jimmy Gator é o apresentador mais famoso da rede de Partridge, e é um duplo abusador de crianças. Faz sucesso expondo crianças num jogo de perguntas e respostas, onde elas se tornam meros objetos de uma plateia sedenta por acontecimentos. Donnie Smith foi um participante deste programa, e era uma criança pródiga, mas que agora sente o peso do sucesso passado ao fracassar em tudo que tenta. Donnie afirma que tem “muito amor para dar”, mas isto ocorre porque não consegue direcionar um pouco desse amor para si. Para conquistar um barman por quem está apaixonado, mas sequer conhece direito, Donnie mudaria qualquer coisa em si. Stanley é o Donnie do passado, atual participante do programa de Gator, e pressionado pelo pai para alcançar dinheiro e sucesso.

Jimmy Gator também abusou sexualmente de sua filha, Claudia. Por sua vez, Claudia tenta preencher o vazio deixado pelos traumas mal resolvidos nas drogas, viciando-se em cocaína. Jimmy tem um câncer, e só possui dois meses de vida. Claudia conhece Jim Kurring, um homem de princípios morais elevados, que escolheu ser policial para tentar solucionar os problemas dos outros, mas que sofre com as consequências disso: a solidão.

Toda trama gira em torno da memória, do passado que ficou presente. O trauma de infância simboliza a própria cristalização dos pecados dos pais recaindo sobre os filhos (há a citação literal do versículo 25 do Êxodo que vai ao encontro disto). Mas, como se livrar deste estigma? Se desistir não é uma opção, o que fazer? É preciso transformar dor em sabedoria, lágrima em alegria. Só quando se encara este passado, de maneira sincera, com verdade, é que se pode seguir em frente. Enfrentar as incertezas, as dores, a ambivalência, a complexidade do mundo moral, para aprender a perdoar, dar-se nova chance. Buscar na experiência, a unidade de sua consciência, significa sair da confusão reinante, e tentar uma vida de bem-aventurança. E é nesta busca por si, que entra a figura fundamental dos anjos.

III

Numa averiguação de ocorrências, Jim encontra no guarda-roupa de uma mulher, alguns corpos. Na saída, uma criança aproxima-se dele e diz que lhe pode revelar o assassino através de um rap. Na música, ele afirma: “Eu sou o profeta, o professor. Vou te ensinar sobre aquele verme. Que eventualmente se formou, quebrando o pescoço de um antigo opressor. Ele está fugindo do diabo, mas a sua dívida é eterna. E se gosta de provocar dor, ele mesmo vai se machucar. E quando o sol não aparece, o bom Deus faz chover”. O menino revela todo transcorrer simbólico da história de Magnólia, avisando ao policial que para certos atos não há perdão, pois sua dívida seria eterna. Mas que, quando tudo parecesse perdido, as respostas apareceriam aos que precisassem de nova chance.

A criança parece ser um anjo. E isto fica mais claro quando Jim quase é baleado ao correr atrás de Worm. Jim perde o seu revólver, que é levado pelo pequeno rapper. O policial vira chacota entre os colegas, e não entende por que tal coisa lhe ocorre, e pergunta a Deus o motivo pra tal provação. Mas, é essa humilhação que permite a Jim visualizar o peso da verdade e da compreensão no encontro com Claudia. E quando o revólver aparece? Caindo do céu, ao final da chuva de sapos. O menino rapper será responsável também pela salvação de Linda, que se sentindo irremediavelmente culpada, tenta o suicídio.

A relação entre as crianças e os jovens também é tratada no bar num diálogo entre Donnie e um senhor que compra os serviços íntimos do barman. Após Donnie declarar sua paixão pelo jovem, o senhor replica: “É perigoso confundir crianças com anjos”. Donnie responde tal afirmativa indo até o seu passado.

Mas, os anjos não são só enunciativos de verdade ou de uma situação futura; ou ainda, responsáveis pelo funcionamento das situações estranhas. Ao assistirem os dramas morais, na contemplação, eles funcionam como incentivadores externos de uma terapia particular. Escutam os desgraçados, testemunham sua dor, sem fazer qualquer julgamento ou expressão de contrariedade.

Phil Parma escuta pacientemente os arrependimentos de Earl, ao tentar aliviar sua dor na recolha dos cacos fragmentados de sua vida, proporcionando o reencontro entre pai e filho. A repórter, Gwenovier, sem julgar Mackey, obriga-lhe a fazer uma profunda imersão na memória e em suas histórias, fazendo-lhe na raiva, sair da casca de macho alpha e dominador de todas as situações, revelando-se um sujeito frágil, dependente, com medo da perda. E Jim, o policial religioso, que faz da ajuda ao outro o próprio sentido da sua vida, oferece a Claudia um amor incondicional (o único verdadeiro), independente dos fatos e do passado, e dependente apenas da essência do seu ser. Pessoas inspiradas por anjos, que salvam a vida dos outros, dão alento, inspiram, criam novos horizontes, e trazem a esperança.

IV

Magnólia é um filme rico em simbolismos. Em especial, aparecem diversas referências a um dos livros da Bíblia, o Êxodo. O Êxodo é o livro da redenção, do reencontro na fuga. Nele, o povo hebreu foge da tirania do poder egípcio, em busca da terra prometida. A redenção é simbolizada no sangue do Cordeiro Pascoal (12.1-28) e pelo poder de Deus na passagem pelo mar dos Juncos (13.1-14.31). No Monte Sinai, a nação redimida aceita a lei.

Encontramos várias referências ao Êxodo, a própria narrativa baseia-se num impasse do passado, que gera o anseio por uma resposta. Os personagens precisam encontrar uma saída, buscar a si próprios, realizar um novo encontro. Todavia, uma em especial, chama a atenção: a chuva de sapos. No êxodo, cada praga aparece como um julgamento do senhor. E em êxodo 8:2, a praga da chuva de rãs destina-se aos que renegarem a partida.

No limite: é assim que se encontram os personagens no momento derradeiro do filme, antes da chuva de sapos. Donnie está prestes a perder sua identidade. Jim acaba de perder Claudia, que por sua vez, está ainda mais desorientada e escrava do vício. Jimmy Gator renúncia a própria vida depois de não ter tido coragem de confirmar a sua mulher que molestava a filha. Linda tenta se matar em seu carro. Stanley se isola na biblioteca e pensa nas atitudes do pai. E finalmente, Frank vive um sentimento conflituoso a respeito do pai a quem vê partir em sua frente. A vida parece ser plena desgraça e perda. Então, Frank T.J. Mackey grita para o pai: `Não se vá! Não se vá!`. Neste momento, começa a cair sapos do céu.

A chuva de sapos é um castigo, mas ao mesmo tempo, é ela que traz a redenção para todos que receberam nova oportunidade. Como nos dizeres do menino: “E quando o sol não aparece, o bom Deus faz chover”. Donnie quebra os dentes ao ser atingido por um sapo, e entende que não precisava de aparelhos; Jim recupera sua arma e entrega seu amor a Claudia; Earl abre os olhos antes da morte e vê Franck, realizando o encontro com o filho; que por sua vez, irá visitar Linda no hospital, vítima de um suicídio mal sucedido.

O filme termina com uma grande reflexão sobre o que devemos perdoar, contrastando o desprezo pelo poder humano em sua mesquinharia com a piedade por nossa condição. Nessa chave, realiza-se a redenção dos desgraçados. À sua maneira, Magnólia trata do passado, da experiência do perdão, e da condenação

sexta-feira, 27 de junho de 2014

Os "Marginais" Da Bola Contra Os Burocratas De Plantão: em defesa do futebol.



Mulheres, cigarros, bebidas, e quem sabe, uns “entorpecentes” como o Rock n’ Roll. A boa e velha boemia parece cada vez mais distante do futebol moderno, rígido na exigência da condição física privilegiada. Assim como, as astúcias na relva verde (um empurrão ali, um braço esticado, uma porradinha quando necessária) parecem ter virado coisa do passado, na contramão da profissionalização. No entanto, os craques sempre deram seu jeito. Fora ou dentro de campo. Porque muito além de um espetáculo plastificado, em condições fabris prontas para o comércio das emoções, o futebol é – e continuará sendo – um jogo coletivo, de contato, com ritos tribais, que inspiram tradição, compromisso, lealdade, e dignidade. 

Quem já jogou uma única partida de ludopédio na rua ou nos gramados sabe que não se deve lealdade as normas da plateia, a indústria dos bons comportamentos do “politicamente correto”, mas ao seu grupo, sua tribo, pois é nela que se constitui sua identidade no momento mesmo de comunhão com o outro. Assim, no goleiro, deposita-se toda confiança na nobre arte de não deixar vazar sua meta. Do atacante, espera-se a bravura dos heróis, que se atira contra o inimigo para vazar suas redes. Todos possuem uma função. Todos confiam um no outro, e todos sabem que os outros lhe depositaram a confiança. Por isto, não há esporte coletivo sem entrega. A maior – e única profunda – indignidade que pode haver dentro de um campo de futebol é a apatia. Um jogador que não se entrega em campo, que não demonstra vontade ou brilho nos olhos, é um canalha na mais precisa das definições. Pois, não pode haver maior falta de respeito aos seus companheiros, a confiança dada, e a deusa bola, por quem corremos a entregar nossos presentes, crentes por uma dádiva; do que a indiferença.

Praticamente todas as cosmogonias a que temos conhecimento começaram num grandioso embate, gerador do nosso mundo e da realidade. E desta origem ao fim do mundo, a ideia de guerra nos atravessa. Assim, no próprio mito de fundação carregam-se todos os elementos da inevitável queda, o fenecimento por um embate: vida, glória, morte e tragédia estão interligadas. A guerra é mítica. E os esportes coletivos funcionam como uma espécie de metáfora da guerra. Uma equipe de indivíduos uniformizados, prontos a competir contra outra, esperando vencer a batalha de acordo com os objetivos do jogo, diante de uma plateia de amigos ou inimigos.  Qualquer esporte possui os seus rituais. E o hino cantado antes dos jogos de uma Copa do Mundo, por exemplo, nos rememora o senso de pertencimento a um povo, clamando a luta para defesa da honra com seus iguais. Os jogos sempre foram ritualísticos, significando luta, bravura, lealdade aos seus iguais, respeito pela tradição. Mas, pode significar também uma luta íntima: da dignidade e lealdade que o campo impõe contra o medo, a fraqueza e as dúvidas. Rúgbi, futebol, basquete, handebol, polo aquático ou qualquer outro jogo coletivo: a metáfora tribal é a mesma.

Acontece que, o homem – como a vida – é ambivalente, não sendo só constituído na vida material de uma só coisa. Se nos sentimos mais seguros, livres e tranquilos no mundo moderno das instituições; precisamos – também – dar vazão aos nossos impulsos (às vezes, os mais inatos), massacrados por tantas camadas de cultura. Se antes, a guerra tinha caráter sagrado, de demonstração de bravura nas conquistas, cumprindo uma função social; ela foi dissolvida no monótono mundo das formalidades institucionais, onde a banalidade nos assegura mais liberdade e conforto. Mas, como qualquer elemento da nossa vida ambivalente, ela retorna de outras maneiras. Por isto, precisamos de um descanso da normatividade, para rebeldia mediada dos impulsos. E os esportes coletivos fazem esta ponte entre civilização e barbárie, razão e impulso. Sem este sopro, o retorno do recalque do que há de violento no homem transfigura-se em perversão, indo das mais sutis (como a sonsice) às mais perigosas (como o sadomasoquismo).

No entanto, o futebol também é parte de nossa vida moderna, possuindo expectativas de conduta socialmente mediadas, um conjunto de regras escritas a ser impostas pelo árbitro, além de ser um produto exposto à venda. E nesta ambiguidade mora a sua essência: uma disputa entre os impulsos e a razão, entre a comunidade e a sociedade, entre o tribal e as instituições, entre nossa liberdade ensimesmada e nossa liberdade de ver os outros. Neste sentido, por sua incerteza e comoção, o futebol é o mais dionisíaco dos esportes. Dentro de um campo de futebol, não há compromisso formal, leis civilizatórias, mas só a vida do espírito, profundo sentido de existir, sem abstrações. Criando um código próprio de condutas.

Por isto que, jogadores polêmicos tornam-se sempre personagens centrais do jogo. Pois, eles nos trazem um sopro de humanidade, espontaneidade, vida real, e não uma conduta esperada, plastificada. O futebol foi feito para alcançar sua quintessência na paixão das personalidades complexas. Heleno de Freitas era um boêmio, egocêntrico como qualquer artilheiro que se preze, era admirador das mulheres, das boas bebidas, de um bom jazz, e de Dostoiévski. Heleno era o próprio excesso: desmedida de personalidade, desmedida de impulso. E graças a isto, encantou em campo (com dor, gozo, paixão e suor), a ponto de virar personagem de Garbo. Como um herói trágico, foi das grandes glórias ao fundo do poço. Morreu em ruínas, num sanatório, sofrendo de sífilis. Sobre ele, Armando Nogueira dizia: “O futebol heroico e elegante de Heleno de Freitas despertou em mim a paixão pelo futebol. Avassaladora paixão da qual, com a graça de Deus, jamais hei de me curar. Heleno de Freitas foi a personalidade mais fascinante e também a mais dramática que conheci nos estádios".

Quem via aquele menino norte-irlandês de 1,78, a zombetear de toda defesa adversária com seus dribles desconcertantes, encantava-se. George Best era a própria provocação em campo. Partia para cima das defesas adversárias, com tal destemor do fracasso (a bola roubada), da mesma maneira que se entregava a vida sem tino, nas noites de bebidas, cigarros e mulheres. Reza a lenda que o mito conseguiu resolver sozinho uma peleja de ludopédio, mesmo estando visivelmente bêbado. Quem sabe, tenha até jogado melhor.

O que falar então de Almir Pernambuquinho? Almir fazia jus a fama de destemido e bad boy. Ele foi protagonista da maior briga da história do Maracanã. Na final carioca de 1966, Almir desconfiava que o juiz e alguns companheiros de sua equipe, o Flamengo, tinham sido subornados pelos Andrades, reis do jogo do bicho, e administradores do Bangu. O jogo começa, e dois de seus companheiros saem de campo depois de entradas criminosas do adversário, em que o juiz nada deu. O seu goleiro toma gols esquisitos, e Ladeira, atacante do Bangu, agride Paulo Henrique, beque do Flamengo, sem que o juiz nada faça. Almir não teve dúvidas, e indignado, partiu para a porrada, tendo seu nome entoado fanaticamente por sua torcida. Assim, ele protagonizava a maior peleja da história do mítico estádio. Almir morreu em 1973, defendendo atores-bailarinos do grupo “Dzi Croquetes” que estavam sendo agredidos por portugueses asquerosos, num bar de Copacabana. O destemido atacante morreu sendo o que era.

Seja como for, são estes indivíduos errantes, repletos de ambiguidade e complexidade, que dão alma e luz a opacidade da vida, sendo parte da própria essência do jogo. Pois, o futebol não ensina regras, não ensina leis, ou coisas formais e abstratas, ele não é normativo. O futebol é mais carne-viva, paixão, surpresa, irrupção de um momento, breve reconciliação com a natureza. Qual a diferença do craque para nós, reles mortais? Os craques anteveem a jogada, e por impulso, sabem o que deve ser feito, e fará bem feito. Os craques congelam o tempo, intuem a verdade da bola, e elabora sua magia tecendo uma narrativa de imagens esplendorosas. Em certo sentido, os craques são o inverso da civilização, pois não se dobram as camadas sociais, ou a massificação da cultura, ao mostrarem todo seu brilho e elegância, nos distinguindo deles. A igualdade não foi feita para o craque.

Porque no nosso mundo cotidiano, trivial, banal, precisamos de instituições democráticas que freiem a radicalidade do poder, pois a vida em sociedade exige prudência. Não no campo. Lá, o craque é despudor de talento. O futebol é arte, e por isto mora nas dobras do mundo, entre o ser e o não-ser, podendo apresentar em centelhas tão rápidas como um drible de Mané Garrincha, vislumbres de nossa condição paradisíaca.

O futebol não te diz “siga essa regra: não matarás”, mas ensina na prática o sentido mais profundo da existência, na dignidade e lealdade reconquistadas com os seus companheiros e adversários. Pois, também não há maior honra, dignidade, e demonstração de respeito do que o fato de ter alguém a se empenhar em te vencer. A dignidade da competição. Por isto, Camus dizia: "Tudo quanto sei com maior certeza sobre a moral e as obrigações dos homens devo-o ao futebol”.

Agora, em plena Copa do Mundo, assistimos ao triste espetáculo da perseguição pública a um jogador de brio, Luisito Suárez, que vive em sua paixão, dor, glória e erros, a tradição de Heleno de Freitas, Almir Pernambuquinho, Romário, George Best, Edmundo, Gattuso, e tantos outros. Uma mordida não é a conduta mais digna perante o jogo, porque se o contato mais firme, a disputa de bola, a valentia, e até socos e pontapés, fazem parte da realidade da disputa; uma mordida ou uma cuspida são gestos pequenos, mas insultuoso no ambiente futebolístico. Entretanto, o futebol é feito também pelos excessos de indivíduos errantes, que ultrapassam os limites do respeito pela desmedida de compromisso. Ao errar, Suárez nada quis além de provocar o adversário e proteger sua equipe e companheiros. Como o doping de Almir, a virilidade de Gattuso, a malandragem de Romário, la mano de dios de Maradona, são excessos de personagens marcantes, que fazem da sua vida o próprio símbolo da ambivalência.

Erros podem e devem ser punidos, de preferência dentro de campo, ou entre os jogadores. Mas, o que os engravatados da FIFA (que nunca chutaram uma bola na vida e nada compreendem da dignidade e lealdade do jogo) fizeram é um estúpido ato de covardia, seladas por uma pena desproporcional. Porque ontem, hoje, e amanhã, o que os burocratas de plantão – apaixonado por si e suas funções – sempre almejam é só uma coisa: pôr fim a ambivalência da vida, entregando toda esta na certeza formal do preto no branco. Contra os burocratas de plantão, que matam o futebol em sua essência, precisamos resgatar o seu sentido mais real e profundo. O futebol não merece ver Luisito tanto tempo longe, pois ele é parte da essência do futebol.  Mesmo no erro, Luisito é um bravo, um forte, um homem digno, que honra o esporte bretão. Ao invés disso, deveríamos punir, com o nosso desprezo (tornemos os burocratas de plantão insignificantes), os apáticos. Estes sim, os verdadeiros e grandiosíssimos hijos de puta.

Senhores, não tirem do futebol a ambivalência da vida.


Senhores, não tirem de nós essas personalidades complexas, errantes, que moram numa “zona cinzenta”. Senão, vocês estarão nos tirando o próprio futebol.

quinta-feira, 19 de junho de 2014

Na Proa do Titanic, de Costas para o Mar



“O mundo jamais o desencorajará de operar na configuração padrão, porque o mundo dos homens, do dinheiro e do poder segue sua marcha alimentado pelo medo, pelo desprezo e pela veneração que cada um faz de si mesmo. A nossa cultura consegue canalizar essas forças de modo a produzir riqueza, conforto e liberdade pessoal. Ela nos dá a liberdade de sermos senhores de minúsculos reinados individuais, do tamanho de nossas caveiras, onde reinamos sozinhos.

Esse tipo de liberdade tem méritos. Mas existem outros tipos de liberdade. Sobre a liberdade mais preciosa, vocês pouco ouvirão no grande mundo adulto movido a sucesso e exibicionismo. A liberdade verdadeira envolve atenção, consciência, disciplina, esforço e capacidade de efetivamente se importar com os outros – no cotidiano, de forma trivial, talvez medíocre, e certamente pouco excitante. Essa é a liberdade real. A alternativa é a torturante sensação de ter tido e perdido alguma coisa infinita.”

In Memoriam de David Foster Wallace. Que me legou com estes dois parágrafos, o ímpeto criador, dando vida e ânimo ao texto.

Era abril de 2009, deitava calmamente num banco à espera de mais uma aula, provavelmente aborrecente, enquanto tinha em mãos um livro de Fredric Jameson: Pós-Modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. Antes mesmo de entrar na graduação, o assunto já me fascinava por abordar os estudos culturais de maneira menos trivial ao qual estava acostumado. Já o tinha tido em minhas mãos em outras oportunidades, mas me considerava, na época, burro demais para entender qualquer coisa expressa pelos jargões herméticos de Jameson.

Eis que, logo no início da leitura (sabe-se lá Deus em que página) encontro uma daquelas passagens que te marcam profundamente e, sem você perceber, grava-se na “memória da alma”, para de lá, nunca mais sair. Não lembro a expressão exata, mas dizia algo do gênero: “num mundo modernizado, onde os homens movem a qualquer momento uma montanha, e dominam a natureza, a ideia de essência ou algo constante não poderia nos parecer mais estranha, num mundo onde tudo é percebido como mudança”. Não sei qual seria minha reação ao ler novamente os livros de Jameson, depois de tantos anos e descontinuidades. Mas isso, pouco importa. Naquele momento, a leitura condensava em mim, uma inquietação, fruto de uma ambiguidade.

Antes de entrar na graduação, Robert Kurz e toda sua trupe da Krisis (Scholz, Jappe, etc.) me causou comoção. Uma crítica radical ao valor e ao moderno sistema produtor de mercadorias (incluindo, o socialismo real); a negação radical (com a antipolítica, antieconomia, etc.); a radicalidade da preguiça, culminando no manifesto contra o trabalho. Uma crítica radical a toda ideia de fetiche, ao mercado, ao trabalho, a cisão de gêneros, e não a questões específicas do marxismo tradicional. Junto com isto, vieram os situacionistas e Debord, a admiração pelo espírito de 68, o Foucault do Vigiar e Punir, Deleuze, Negri, Woodstock, hippies, os filmes de Godard, Bertolucci, etc. Ainda que, avesso a classificações, era um típico libertário ao meu modo. Meu agir no mundo estava (quase que) inteiramente mediado por essas crenças.

Entretanto, toda essa ânsia juvenil por liberdade, era contrabalanceada parcialmente por certas leituras de Lukács; que de alguma forma, ressoava uma parte da crítica reativa (conservadora) ao “mundo burguês”. A minha tendência ao relativismo, ao historicismo, e ao culturalismo, morria no berço. A leitura de Jameson, acompanhada na mesma época pela de Terry Eagleton, em sua labuta contra a pós-modernidade, colocava-me em outra situação: perceber nesse espírito libertário, uma parte integrante do “sistema”.  A associação entre o pós-modernismo e o capitalismo pós-industrial, tendo no espírito do maio de 68 o seu inaugurador simbólico, tomou-me de assalto, ampliando minha imaginação e entendimento. Só muito tempo depois, desenvolveria esta percepção ainda tão vulgar.

Seja como for, simbolizada nesta ambiguidade (ainda que mal trabalhada); em mim, permaneceu viva uma sensação assustadora, ainda que, prematura: existia no desejo de ruptura e de negação ao mundo presente, uma confirmação deste mundo, ativando suas engrenagens (o progresso), e fazendo sua dialética prosseguir. Na minha mente de vinte anos, o espírito de 68 deixou de causar sonhos românticos com a “imaginação no poder”, e passou a representar outra coisa: parte da “cultura do novo capitalismo”. É da minha personalidade, ser avesso a certas convenções, mas percebia no “ensimesmamento” em nome da liberdade da moçada libertária mais uma delas. Somam-se a isto, experiências concretas que, mostravam-me a irresponsabilidade, a imaturidade, a falta de compromisso e lealdade. A busca histérica por um ideal de mundo sempre resulta em seu contrário. Sobre isto, um trecho de A Euforia Perpétua de Pascal Bruckner, está repleto de razão:

“O que ocorreu para que a crítica da sociedade de consumo tivesse tão rapidamente a partir dos anos 60, conduzido ao triunfo do consumismo? É que as palavras de ordem lançadas à época: “Tudo imediatamente”, “Morte ao tédio”, “Viver sem prorrogação e gozar sem entraves” se aplicavam menos ao domínio do amor e da vida do que ao da mercadoria. Acreditava-se estar subvertendo a ordem estabelecida, mas favorecia-se com total boa fé a propagação do mercantilismo universal. É no plano da fome e da sede que todas as coisas podem se tornar imediatamente acessíveis, já que o espírito e o desejo têm seus ritmos próprios, suas intermitências. A intenção era libertária, o resultado foi publicitário; liberou-se menos a libido do que o nosso apetite por compras sem limites, nossa capacidade de agarrar sem restrições todos os bens. Bela imagem do revolucionário como prospector oficial do capital é no que se transformaram afinal o movimento operário, o marxismo, e a esquerda radical, capazes de criticar uma falha no sistema, mas de permitir-lhe se modificar a um custo mínimo. Um pouco como aqueles hippies que descobriram lugares sagrados de turismo na Ásia, na África, ou no Pacífico trinta anos antes de todo mundo, mas que eram movidos pelo desejo de fugir e se isolar. É absurdo criticar o consumo, luxo de crianças mimadas. Ele tem de atraente o fato de oferecer um ideal simples, inesgotável, acessível a qualquer um, contanto que esteja solvente. Não exige outra formalidade senão ter vontade e pagar. O consumidor é cevado, saciado como um bebê alimentado a colheradas. Seja o que for que achemos disso, divertimo-nos bastante, pois, como na moda, adotamos sofregamente o que é proposto como se tivesse sido escolhido por nós”.

Faço todo esse preâmbulo a uma época de minha vida intelectual, mas que foi ainda mais significativa em casos concretos (não só na militância), para introduzir um tema que me é caro: a revolta permanente não só como elemento integrante, mas uma espécie de lança do mundo moderno, ao mesmo tempo, universalizando-o em suas bases e nos trazendo a sua decadência. O homem revoltado, mostrado por Camus, é a herança do mundo moderno, contra o qual ele aparentemente se contrapõe. Homem permanentemente revoltado que hoje, fez da indolência militante (de longe, generosidade; mas, de perto, busca pelas fantasias próprias de um paraíso particular) a sua morada, e da revolução um contínuo integrado, sendo realizada diariamente como uma infernal previsão, levando ao limite aquela incompatibilidade tão bem notada por Camus entre a revolução e o amor. Não me excluo de nada que aqui analiso, pois, tudo o que observei foram frutos de certas situações que vivi, em lugares-limites que fui, e em experiências que observei. Tive que me debruçar, para investigar a revolta em mim mesmo. Este texto é também uma história de busca e um método de autoconhecimento. Em certa medida, é uma prazerosa e dolorosa autocrítica.

Desde então, assusta-me de sobremaneira, a interligação entre: o homem revoltado com o mundo que lhe cerca; o pragmático liberal (de direta ou esquerda) que acredita na estabilidade do mundo institucional, sem vislumbrar a sociedade sufocada por tantas camadas formais, perdendo qualquer substância que lhe dê sentido e comunhão; e o libertário utilitarista, que acredita no poder do desejo individual como remédio para todo mal.

Olhando assim, a questão parece ser: apoiar ou negar o mundo que aí se encontra? Porém, esta pergunta cria uma espécie de caixa com fundo falso, onde até a saída não passa de uma miragem. A solução para este enigma reside na falta de solução. Todas elas são irrelevantes, afinal. É preciso largar este falso dilema, para reconquistar nossas percepções e o senso de responsabilidade de ação no mundo: ser responsável por seus atos, reconhecê-los, e assumir as consequências. A dignidade mora na responsabilidade para com o outro.

Não há mundo melhor. Somos seres incompletos, aspirando alguma religação. A incompletude e a ambivalência das situações práticas do nosso mundo material fundam a cultura. Tentar eliminar os limites da vida é – de partida – revoltar-se contra a própria estrutura da realidade, dos sentimentos que circulam entre todos nós, e fazem a ponte entre a objetividade e a subjetividade, nos comunicando. Estar no mundo, buscar sua voz interior, compreender suas circunstâncias e o seu ser, obriga a uma visão de mundo que contemple sempre as perdas e os ganhos, sem grandes aspirações políticas totais. Sem ilusões da carne: o pragmatismo como cálculo social e afetivo. A vida reduzida a política torna-se pobre, por que não é nela onde se encontra os seus grandes enlaces e encontros. Contra esta política como doxa do mundo moderno, a arte virtuosa parece o último refúgio da verdade. A literatura de Dostoiévski expressa isto.

Seja como for, neste texto, trato de uma inquietação. O que me preocupa é mais certa visão de liberdade, de humanos vaidosos e entregues ao culto de si mesmo, que tenciona a sociedade moderna aos seus limites de destrutibilidade. Meu interesse é investigar e refletir o mundo que se perde em busca dessa “liberdade de sermos senhores de minúsculos reinados individuais, do tamanho de nossas caveiras, onde reinamos sozinhos”. A liberdade de venerar a si mesmo, dogmática, inflexível, que não se mistura, e tem “nojinho” da dura realidade. Em contraposição, a liberdade que valoriza a disciplina, a lealdade, o compromisso, o desejo cultivado e não as fantasias e os impulsos mais primitivos, sem que deles se prescinda. A liberdade que encontra a sua voz interior, a sua personalidade. Esse texto não é uma peça de acusação política, mas um exercício de amor à vida que merece ser vivida, com sinceridade, verdade, firmeza, constância, bem-aventurança. Dedico-o a indivíduos de verdade: os que não se dobram diante da crise de personalidade.

1.
A chegada ao Ocidente de livros gregos e latinos, na baixa idade média, ao mesmo tempo em que, a escolástica entrava em crise, criou descontinuidades na história intelectual. A partir, sobretudo, do Século XIII, crescendo nos dois séculos posteriores, desenvolveu-se na Itália, uma tendência a atribuir valor elevado aos estudos das litterae humanae, tornando a Antiguidade Clássica (grega e latina), um paradigma para as atividades culturais e artísticas. Neste sentido, surge o "Humanismo", indicando a tarefa do literato, que iria além do ensino universitário, entrando pela vida ativa e tornando-se "nova filosofia".

O “Humanismo” foi o primeiro adversário mais sério da escolástica. Ele representava certa hostilidade contra o dogma religioso, e tendia a tirar a autoridade dos clérigos e passar para os cortesãos e literatos. Outra característica desta época é a valorização da capacidade racional, como elemento que nos levaria ao conhecimento da realidade, o que costumamos chamar de Racionalismo. É também uma época de valorização do conhecimento empírico e do hedonismo.

Esse período de modificações na história intelectual transcorre paralelamente ao “Século de Ferro”, situado entre 1550 e 1660, tomando como referência as grandes transformações sociais, políticas e econômicas trazidas pela implantação do capitalismo, e a outros acontecimentos históricos, como a Guerra dos Trinta Anos, que delineia a paisagem política e cultural da Europa moderna. Uma mudança ocorre: na vida material das pessoas, com a ascensão da burguesia, renascimento do comércio, crescimento das cidades; na maneira como as pessoas enxergam e se sentem parte do mundo; e no clima intelectual da Europa. Essas mudanças na mentalidade são sentidas nas obras de pensadores como Copérnico. O deslocamento da terra, obra prima do Deus criador, do centro do universo significou que o homem, tido como o supremo ato da criação, deixou também de ocupar seu lugar de criatura sujeito a um Deus. Mas, um personagem, em especial, destaca-se como filho dessa mudança: Francis Bacon. Ele incorpora esse novo espírito da crítica, assentando o que viria a ser a ciência moderna.

Francis Bacon destacou-se pelo combate as concepções da idade média e pela criação de outros princípios, fundando a ciência moderna, em seu Novum Organum. Nessa obra, Bacon tentou demonstrar as inadequações da ciência aristotélica e do apriorismo tomista. Ele argumenta que a ciência aristotélica por ser meramente dedutiva, não proporciona um método investigativo e instrumental, que possa operar na natureza, e chegar a fatos novos. Bacon propôs o método indutivo, por onde – através do experimento – poder-se-ia chegar a postulação de leis universais, sobre a base das instâncias observadas. Embora, a criação desse método tenha sido mais especulativa, as críticas de Bacon à tradição aristotélica abriram novas partas para o pensamento científico.

Desta forma, a partir de Bacon, surge a crença de que a natureza material é um código escondido, que não se revela diretamente ao homem, disfarçando-se. Portanto, para compreendê-la, seria necessário, através de um experimento, dominá-la para obriga-la a dar uma resposta. E este consiste, portanto, na instrumentalização das forças naturais, visando a sua apropriação. Kant, mais tarde, resumirá o espírito dessa nova ciência ao dizer que o cientista não se coloca diante da natureza como um observador, de maneira contemplativa, mas como um juiz de instrução.

A ciência moderna “deverá ser ativa, operatória, eficaz e não contemplativa e verbal. Ela é intervenção na natureza, modificação física desta. Essa relação ativa, e até violenta, caracteriza a pesquisa e aplicação”. (HOTTOIS, 2008: p.66). A ciência moderna precisa ter operacionalidade e eficácia, ao invés de ser contemplativa e verbal. Ela é instrumental, por que precisa intervir na natureza, permitindo que o homem seja senhor e mestre dela. O indivíduo é colocado no centro deste projeto ao isolar elementos da natureza, e não contemplá-la em sua presença total.

Os experimentos são realizados dentro de certas condições, a partir de hipóteses e perguntas pré-estabelecidas, recortando o fenômeno das suas demais relações. O que é examinado não é a realidade em sua presença total, com suas ambiguidades, mas certas possibilidades, isolando a concretude. A ciência moderna esconde a ambivalência do mundo. A própria dialética inerente ao homem, com sentimentos ambíguos que circulam e congelam o tempo, é suprimida. Porque a realidade concreta é um mistério, e só pode ser apreendida, em certos aspectos, por contemplação e observação.

Com o fim do espírito contemplativo, a ciência instrumental – e consequentemente, a técnica e a modernização – insere um elemento subjetivista inegável. Representado pela supremacia do interesse, da ideia de meios e fins, e de adequação (razão subjetiva), sobre as coisas racionais por si mesmas (razão objetiva). A ciência passa a indagar não a substância, mas a função. A ciência moderna nega as pretensões essencialistas da metafísica. Essa nova ideia de ciência, metodologicamente hipotética e controlada exige adaptações às novas instituições, academias, e laboratórios, criando uma separação entre ciência e fé.

A natureza deixou de ser uma experiência real, ambivalente; pois, ao mesmo tempo em que, nos reconfortava com comunhão, ameaçava nossa auto-conservação. Dominando-a, para conhecer suas partes específicas e melhor conservar-se, colocamo-la como objeto de experimento científico. Para compensar essa perda da totalidade e da experiência real, entra em campo o elemento da medição e exatidão matemática. Mas esta, também vem do sujeito investigador, que não pode compensar a perca das relações reais, da experiência, e da presença total da realidade. E disto, decorre o subjetivismo moderno, que – de certo modo – nega a realidade concreta.

A nossa visão da natureza material passou a ser modelada pelos nossos interesses. O indivíduo encontra-se, então, no centro e no topo da realidade. E a grande promessa do mundo moderno é que por meio da ciência e da técnica, o homem poderia se libertar da barbárie, da fome, da ignorância, da injustiça, e se autoconservar melhor. Como desejava Bacon, o saber deveria imperar sobre a natureza desencantada, não reconhecendo limites ou barreiras. “No trajeto para a ciência moderna, os homens renunciaram ao sentido e substituíram o conceito pela fórmula, a causa pela regra e pela probabilidade” (ADORNO; HORKHEIMER; 2006). Recusando aquilo que não se enquadra nos critérios de cálculo e utilidade, a ciência moderna busca o método para operar os fatos a serem ordenados, classificados, permitindo a explicação, a previsão e o controle.

Em compensação, com seus experimentos, a ciência moderna alargou o campo das possibilidades, obtendo muitos resultados, que geraram aplicações técnicas, e posteriormente, processos de modernização. Existindo, desta maneira, uma relação entre uma nova concepção de ciência, mais instrumental, que leva a conquistas técnicas; novas relações sociais, com a ascensão da burguesia; uma nova maneira de ser e estar no mundo; e, novos conceitos introduzidos na filosofia moderna. Representando um novo pensamento e uma nova sensibilidade que emergiram, resultando em profundas transformações socioculturais, com a construção de novas sociabilidades e sensibilidades.

A novidade incessante, gerada pelo domínio técnico, acelera o tempo, abre o mundo, dando margem a uma nova maneira de pensá-lo, de fazer cultura. O perpétuo vir-a-ser, turbilhão moderno, desbrava distâncias, vai “desmanchando no ar” o que antes era sólido. A ciência moderna, as inovações técnicas, a modernização das cidades, alterará profundamente as paisagens e cartografias da vida. O trem, as estradas, as maquinarias, as fábricas, o telefone, e tantas invenções, invadirão o “mundo das tradições”. Se ela nos trouxe mais segurança e comodidade, trouxe também, perda da experiência da presença total (e ambivalente) da realidade, da contemplação, o esquecimento do transcendental e dos valores que dão sentido a uma comunidade, agora meras formas abstratas.

2.

O projeto moderno coloca o indivíduo no centro do mundo, ao prometer que com uso da razão subjetiva (pragmática, instrumental, etc.), do esclarecimento, das luzes, da ciência moderna, nos autoconservaríamos melhor, através de um ordenamento racional e técnico. A modernidade marca também a ascensão do mundo das instituições, do estado-nacional, e da democracia formal, inaugurando a “Era dos Direitos” (Bobbio).

Este projeto é operado, como notado por Max Weber, através da ciência e do Estado. Neste sentido, Weber irá defini-la como a época da “organização capitalista racional assentada no trabalho formalmente livre”. Ou seja, é a era do advento da “organização industrial racional”, orientada para um mercado, em que as empresas não estão mais vinculadas a uma unidade doméstica, e criam sua “contabilidade”. Para isto, o capitalismo não pode prescindir da ciência moderna e da técnica. Esse processo de racionalização penetra as instituições, com o Estado-nacional, que tem sua administração sendo realizada por especialistas e assalariados, ou seja, por uma burocracia independente.

Na cultura, segundo Weber, ocorre um projeto de autonomia, correspondendo à ideia de domínio pessoal nas esferas de valoração humana (como a ciência, a arte e a moral), em detrimento das relações e símbolos metafísico-religiosos que, anteriormente, davam sentido e comunhão à vida humana. Weber denomina este processo de “desencantamento do mundo”: “racionalização” crescente que se manifesta na conduta humana, ao invés das explicações mitológicas ou simbólicas.

Não só pelo crescimento do mercado, mas por ele ter se tornado central em nossa vida cotidiana, podemos falar também – no mundo moderno – numa lógica abstrata do valor. Independente dos formidáveis benefícios que ganhamos com o mercado, não há como negar que as relações objetivas entre as pessoas nele é uma relação – em certo sentido – entre coisas. Ou seja, as relações entre as pessoas no mercado são entre portadores privados de dinheiro/mercadoria. E já que estas relações são mediadas pelas mercadorias/dinheiro, elas tendem a autonomia, podendo afetar a maneira como nos relacionamos com as pessoas em outras esferas. A estrutura mental dessa lógica abstrata do valor (sua equivalência universal) influencia na maneira como produzimos cultura, e de como lidamos com o mundo.

No Fausto de Goethe, o diabo Mefistóteles costumava dizer: “tudo que existe merece fenecer”. Na roda-viva dos processos de modernização e nas engrenagens do progresso, tudo parece se transformar em perecibilidade, mudança, devir. Tudo nos parece descartável. Neste sentido, o torvelinho moderno gera um impasse: promete felicidade, progresso, transformação do mundo ao redor, mas, ao mesmo tempo, nos tira a identidade, os encontros míticos e simbólicos, a constância, as bases transcendentes, aquilo que é sólido. A modernidade ultrapassa as fronteiras entre nações, religiões e culturas, numa espécie de universalismo formal; porém, de maneira paradoxal, vivemos na eterna desintegração, na cultura do repúdio (onde tudo está sempre a se reciclar, começar do zero, de novo e de novo), num turbilhão de mudanças, disputas, e contradições entre o antigo e moderno, gerando mal-estar e angústia.

Pois, no cerne do projeto moderno há uma promessa de felicidade, baseada na ideia de que a humanidade está sempre progredindo em direção à civilização. A justiça e a bem-aventurança saíram do céu e vieram para o mundo terreno, num processo de secularização. O paraíso não deveria ser mais esperado para o além da morte, mas dever-se-ia ser construído aqui e agora, desde que se confiasse na razão, nas instituições, na ciência. “O paraíso terreno é onde estou”, dizia Voltaire. A ideia de progresso suplanta o da eternidade, e o futuro é o refúgio da esperança.

Mas, evidentemente, as promessas feitas pela modernidade não poderiam ser cumpridas. Otimista com o futuro, embriagado de expectativa pelo paraíso próximo, da felicidade perene, e do gozo permanente, livre de todos os males e limites; os modernos se depararam com o abismo, o Século XX. Duas grandes guerras, genocídios, holocaustos, ditaduras coletivistas que matariam mais do que quaisquer outras na história da humanidade, desagregação social, anomia, desenraizamento, perene mal-estar. Se antes admirávamos o mar e a promessa de terra futura onde jorraria leite e mel, de dentro do Titanic, o navio-símbolo do progresso; agora, voltamos nosso olhar para dentro deste navio (ou para dentro de nós mesmos), fazendo dele o próprio palco de nosso prazer efêmero, que nada mais é do que uma revolta permanente contra a realidade. Pois, começar sempre de novo é esquecer aquilo que já se foi, onde tudo é destruído – ao ser integrado – em busca de uma salvação hipotética: salvemos todos, ao tudo destruir, para do “zero” o mundo recomeçar.

O fim da Grande Guerra e a irrupção de 1968 foi significativo no novo estágio do capitalismo e daquilo que gosto de chamar de “hipermodernidade” (Lipovetsky). A base do capitalismo deixa de ser a poupança e o trabalho, e passa a ser o consumo e o desperdício. A vertigem de 1968 inaugura um novo dogma de felicidade, adaptado aos novos tempos, contra a visão restritiva. Agora é proibido proibir, mesmo que isto seja uma abstração sem sentido. A felicidade virou um imperativo, e a redenção passa pelo corpo.

O projeto moderno concretiza-se na globalização, no império das instituições globais (ONU, UNESCO, etc.), na mercantilização da vida, na onipotência do indivíduo, mas também, na universalização do consumo, na ampliação do conforto, e na segurança para lidarmos com nossas próprias vidas; dando-nos ainda mais mostras de suas consequências. A ideia de progresso foi ressignificada, e continua presente na gramática política e no cotidiano das pessoas, não sendo mais defendida de maneira ingênua. O moderno turbinou-se, e como em todo triunfo falta equilíbrio, já se nota no ar o cheiro putrefante de degradação, decomposição e decadência.

A Hipermodernidade é o “império do efêmero” (Lipovetsky), uma cultura do excesso, do sempre mais, pois tudo se tornou intenso e urgente. A sociedade voltou-se para o hedonismo, e agora podemos tudo: pois, temos um dever de felicidade (e não mais um direito). O foco é o prazer mais imediato, e não a realidade mais profunda, e ai de quem contrariar as fantasias e os desejos alheios. O nosso tempo, ao acompanhar a intensidade e (falta de) sentido de nossa vida, virou flexível e fluído. A instabilidade é a regra.

Entregue as suas fantasias, ao dirigir os “seus reinos pessoais”, o homem hipermoderno desfruta de sua liberdade a partir de uma postura impulsiva, e não raramente, histérica. Sem voz interior, mudando a cada instante, ensimesmado, mentindo para si mesmo, perdido sem a tradição e sem poder contar com reflexões a cerca de sua conduta, este sujeito vira um náufrago da existência, uma espécie de “homem-geleia”, onde a inteligência já virou uma pasta, e a confusão e falta de sentido predominam em suas atitudes. Em síntese, perdeu-se a experiência.

3.

A carnavalização dos paradoxos e a destruição do referente, marcas do mundo hoje, possui sua morada no subjetivismo da filosofia moderna. Para René Descartes, na interioridade do homem, ou seja, através da razão humana, a luz natural que o homem possui em si mesmo, sua racionalidade, é que se pode chegar à verdade, e desta maneira, justificar a ideia de ciência, através do método e da dúvida.

Portanto, o conhecimento apodítico não se encontra numa entidade objetiva, ou na estrutura da realidade, mas no sujeito pensante. Com Descartes e Francis Bacon, observamos que nas origens da questão do conhecimento para o mundo moderno, encontra-se o “primado do sujeito”. Com Descartes, exacerba-se a estranheza e revolta quanto à incerteza do conhecimento humano, o que evidentemente levaria a decepções. Logo em seguida, um século depois, chegamos ao empirismo de David Hume, que nega a possibilidade do conhecimento apodítico, colocando até as noções básicas da lógica como incertas. Nascemos com uma folha em branco, aonde o conhecimento sensível vai moldando-nos. O ceticismo de Hume já é reflexo desse primado do sujeito colocado pela ciência moderna e pelo racionalismo, sendo pessimista quanto a sua solução.

Num esquema realista, o conhecimento é o conhecimento das coisas, e as coisas são transcendentes a mim. Num esquema idealista, como o kantiano, pode não haver nada a não ser minhas ideias, e assim, as coisas são algo imanente, e meu conhecimento é de minhas próprias ideias; ou minhas ideias são das coisas, onde estas dão-se em minhas ideias, sendo ideias das coisas, e não só minhas, aparecendo como fenômenos.

Kant distingue a razão pura da razão empírica, e a razão prática da razão teórica. A razão teórica quer estudar o objeto em si (por exemplo, o homem em si, a antropologia filosófica), o que ele é; enquanto, a razão prática quer estudar a forma do sujeito cognoscente realizar-se no mundo: o que eu devo fazer. A fonte do conhecimento tanto da razão prática como da razão teórica poderia ser a razão pura ou a razão empírica. Nesta, chega-se ao conhecimento procurando-o na experiência, na realidade empírica; já na razão pura, chega-se ao conhecimento procurando-o nas ideias inatas, com as quais já nascemos. Kant chega a seguinte conclusão: só existem a razão teórica empírica e a razão prática pura. Então, o caminho da moral é exatamente o oposto da razão empírica, pois existe uma lei moral dentro de mim (o imperativo categórico). E só é possível conhecer as coisas a partir da experiência. Assim, nada conhecemos da natureza em si, mas só dos nossos esquemas mentais projetados.

4.

O indivíduo ensimesmado do mundo moderno, que se considera a própria encarnação da verdade, mostra grandes doses de vaidade. E esta, é o desejo de atrair a atenção e admiração das outras pessoas, cristalizando uma imagem pessoal forte que precisa ser reverenciada. Geralmente, pessoas muito vaidosas possuem problemas de autoestima, não pela falta de atenção, mas pela personalidade frágil: basta alguém não comprar sua aparência de vencedor, para entrar em parafuso.

O ser humano é incompleto, traz dentro de si um vazio interior. Mas, quanto mais frágil é sua personalidade, quanto menos ele tem consciência de si, dos seus méritos e defeitos, mais precisa da aprovação alheia. A vaidade é reforçada para compensar um vazio interior aterrorizante. Vaidade é medo, por fim. Medo do fracasso, porque ele nos humaniza, mostra que não somos fortes como um Deus imponente.

Só um indivíduo frágil, sem voz interior, sem consciência, sem vida própria, e ao mesmo tempo, tão dono de si mesmo e vaidoso, pode se dissolver na massa. O “homem-massa” não faz parte de uma classe, mas é uma forma de viver o mundo de maneira peculiar, ao não possuir preparo para o seu autogoverno. Assim Ortega y Gasset define o “homem-massa”:

É o homem previamente esvaziado de sua própria história, sem entranhas de passado e, por isso mesmo, dócil a todas as disciplinas chamadas “internacionais” (…) só tem apetites, pensa que só tem direitos e não acha que tem obrigações: é um homem sem obrigações de nobreza.”

O “homem-massa” produz a cultura do repúdio. E a cultura do repúdio é a cultura do esquecimento, pois começar sempre de novo é esquecer daquilo que já se foi. Expostos a mudança incessante, e a perda de referências, o indivíduo fica confuso, entregue aos impulsos. Sua personalidade passa a ter a mesma constância de uma geleia, e o seu cérebro vira uma pasta, onde nada mais se distingue. As vivências passadas não se tornam experiências, porque não há mais aprendizado. O que se viveu deve ser esquecido em prol do novo acontecimento. Sem a reflexão do ocorrido, o homem não se torna maduro, pois não acumula mais experiências.

Por não possuir memória e experiência, o “homem-massa” não atribui a si um valor, não se enxerga como uma personalidade; mas sim, como um autômato de prazeres, fantasias, e impulsos imperiosos (encanto consigo mesmo), tornando-se parte integrante de um coletivo, já que todos os humanos são legalmente iguais. Afirma Ortega y Gasset: “Ingenuamente, sem ser arrogante, como a coisa mais natural do mundo, tenderá a afirmar e qualificar como bom tudo o que tem em si: opiniões, apetites, preferências ou gostos”.

O homem maduro, ao contrário, possui uma íntima necessidade de apelar para uma norma superior, colocando-se a serviço dela, exigindo mais de si do que dos outros (enquanto, o homem-massa nada exige de si), ao não se colocar como medida da verdade. O “homem-massa” é violento em suas intervenções, porque se julga o umbigo do mundo. A sua socialização foi efetuada pela rígida identificação com um grupo de ideias, contentando-se com elas, sem precisar da contínua busca intelectual. Sobre isto, Ortega y Gasset nos diz: “Não é que o vulgo pense que é excepcional e não vulgar, mas sim que o vulgar proclama e impões o direito da vulgaridade, ou a vulgaridade como um direito”.

O ser humano frágil, diluído na massa, crê ser possuidor de ideias, mas não sabe formá-las, só reproduzi-las como meio da sociabilidade grupal. Um novo tipo de homem, que nega as certezas, mas que se mostra decidido ao impor suas opiniões, limando de sua convivência o que não se adequa a elas. Ergue-se como representante da liberdade, mas atua de maneira dogmática, direta, impulsiva, e – não raro – violenta. Este homem diluído na massa é herdeiro direto do projeto moderno, mesmo que contra ele, possa se voltar. Por isto, fala em nome da diferença, ao mesmo tempo em que, na prática, odeia-a profundamente. O “homem-massa” comporta-se como uma “criança mimada”, pois possui a impressão radical de que a vida é fácil e simples, sendo furtada e limitada por poderes externos a ela. Por isto, pensa que pode em qualquer lugar se comportar como se estivesse em sua casa, fechando-se a qualquer instância ao impor sua opinião vulgar.

O mundo moderno também corresponde ao advento da banalidade, da vulgaridade, e da massificação da cultura. A banalidade é a imanência total da humanidade em si mesma, o império da trivialidade, criando dois tipos de prazeres: a exaltação e a monotonia. A vulgaridade é a cópia barata, a simulação daquilo que não se é. O vulgar se instala no lugar daquele que imita e pretende a ele equiparar-se. Nisto, mora a falta de estilo do burguês, que ao tentar imitar as maneiras e vestimentas do nobre, substitui a simplicidade e elegância pelo exagero, resultando num pastiche exemplar. Sobre a massificação da cultura, diz Ortega y Gasset: “A característica do momento é que a alma vulgar, sabendo que é vulgar, tem a coragem de afirmar o direito da vulgaridade e o impõe em toda parte”. As qualidades humanas foram equiparadas (como duas mercadorias), diluindo todo destaque pessoal, e brilho singular.

Perdido num mundo fragmentado, sem a profundidade e constância do reconhecer-se no outro, sem identidade, e sem a experiência transcendente que lhe dá um senso e sentido superior; o homem (hiper)moderno mesmo desfrutando de sua liberdade, sente-se frágil diante dos outros e do mundo, pela ausência de laços (os consultórios de terapia estão cheios, aliás), fruto da vaidade, da onipotência e do ensimesmamento deste sujeito. Para suprir essa ausência, ele procura uma identidade num reconhecimento abstrato. Não raro, este “homem-massa” secularizou os antigos laços reais e profundos, substituindo-os pela ideologia (seja como senso comum, ou como sistema de ideias), fazendo dela seu laço de sociabilidade e identificação grupal. Um laço tão frágil como nossas certezas sobre o mundo material. Por isto, vivemos numa grave crise de personalidade. E os políticos, em geral, hão de ser incapazes disto negar. Indivíduos de verdade, estamos a sua procura!

Acontece que, a conquista da sua voz interior, de sua personalidade, do desejo cultivado de bem-aventurança para além das fantasias de nossos impulsos, não exige apenas um profundo debruçar-se sobre si mesmo, mas isto, num processo de encontro com o outro, rico e gerador de experiências. Onde o “eu maduro” só se forma ao reconhecer-se em outro.

Mas, como perdemos a capacidade de transformar vivência em experiência, nos acostumamos a viver uma vida oca, fútil, frágil, sem sentido, sem significados, e agora, desorientada, sem comunhão. Num mundo com pessoas tão pobres de experiência, não há senso possível de responsabilidade. Pois, esta exige um indivíduo consciente de seus atos, e dono de sua voz interior, que lhe acusa quando necessário.

Os homens deixaram de pensar sobre a ambivalência da vida e de ter perplexidade diante do complexo mundo moral e de seus limites. Pelo contrário, agora todo e qualquer limite precisa ser suplantado em nome do princípio do gozo e do dever imperativo de felicidade. Neste mundo, pensar na substância das coisas virou um pecado.

A própria gramática política perdeu qualquer sentido e referência. Por exemplo, a esquerda radical agora, brada contra o progresso, ao mesmo tempo em que, age como um iluminista deliciando-se com o deslocamento contínuo de uma aparente luta que, vai vencendo contra seus “inimigos”, no plano cultural. Na base, é um raciocínio progressista, com o deslocamento do sentido das palavras, pelo acúmulo de conquistas.

O debate nas redes sociais também perdeu qualquer sentido, se é que, um dia teve um. Já não se trata mais de debater um tema espinhoso e cheio de nuances e ambivalências, com frases-feitas, jargões de manuais vulgares, ou coisas do gênero. Agora, o debate é feito com o puro sentimentalismo grupal, de maneira histérica, com “memes”, e frases tautológicas que nada dizem, como: “sabe de nada, inocente”. Já não se pode mais distinguir o original da paródia. Uma manada de “homens-massas” aguarda ansiosa para saber da verdade de seu grupo, a espera do grande momento: atacar o adversário. Sem qualquer reflexão, eles buscam por bodes expiatórios que, em tese, impediriam o esperado paraíso sob a terra. Já se foi o tempo onde não era raro ver indivíduos pensantes, de personalidade, sobressaindo-se sobre seus grupos, reafirmando sua posição, e demarcando seu pensamento.

Seja como for, o projeto moderno é baseado em liberdade, mas especificamente na libertação de um homem; mas, tudo nessa vida possui dobras. O que era pra libertar, também domina. O homem queria se conservar melhor neste mundo, com conforto e segurança, e agora vive o pior tipo de escravidão: a do próprio impulso. Estar submetido perenemente aos jugos de sua vontade imediata é já viver o inferno, sem precisar de crença alguma. Ao tentar dobrar a realidade às suas fantasias e impulsos, como a técnica faz com a montanha, o homem permanentemente revoltado enuncia suas crenças contra o mundo liberal, mas ele nada é além desse espírito moderno indo ao seu limite. De nada adianta a liberdade, sem a unidade da experiência.

Poder-se-ia estranhar essa identificação do homem revoltado com o ensimesmamento, já que ele – em tese – luta pelo bem-comum, arrisca sua integridade física, abre mão de conforto, segurança e de sua vida privada, para lutar pelos outros. Hai de tremer diante de uma injustiça, este é o lema do homem indignado. Com certeza, há algo de muito belo nisto. E mais: neste impulso desesperado, certamente mora um suspiro final, diante do sentimento de morte de uma vida autêntica, que lhe tiraram, e da qual, ele é a máxima e ambígua expressão. Entretanto, é um tipo de beleza perigosa que, até agora, sempre terminou em cabeças cortadas, gulags, tiranias, e perseguições.

Do que se trata, então? De desmistificar a oposição: “coletivo” versus “individual”. A revolta, a rebeldia, a transgressão, a resistência, são partes do mundo, que sempre existiram e hão de existir. Todavia, o homem revoltado é aquele que se sente permanentemente insatisfeito com o mundo em que vive, estando sempre indignado, querendo dobrar a própria realidade ao seu desejo (a ideia de revolução).

O homem revoltado não defende uma causa específica, ele vive e se identifica com várias causas, dando-lhes unidade, impondo-as sua pessoalidade. Assim, para ele, não se trata de defender, por exemplo, a melhora do transporte público em sua cidade; mas, de vivenciar essa luta, identificar-se com ela, entregar sua paixão pessoal e seus impulsos, em nome não da causa, mas de uma fantasia histérica, fruto de um impulso transbordante para fugir da mediocridade da vida burguesa, tomada pelo tédio. Para realizar essa fantasia, ele entrega seu coração. Ao mesmo tempo em que, ele pode encontrar-se com o outro, ajuda-lo, e contribuir com alguma coisa, ele o faz pensando em si, e em sua realização pessoal, gerando um encontro enganoso e efêmero, que dura tanto quanto o auge de sua entrega. Isto no melhor dos casos, em outros, ele fala em nome do “bem-estar” comum, quando, na verdade, está tutelando o resto da sociedade. Nisto, consiste a dialética entre o individual e o coletivo, simbolizada em todas suas tensões, na figura do homem revoltado. Entretanto, é cada vez mais difícil distinguir nos movimentos de resistência e revolta, a figura do homem revoltado daquele que está preocupado em resolver uma questão específica.

Acontece que, na base de formação desse homem, encontra-se a acídia, ou seja, o cansar de si mesmo, imposto pela apatia do cotidiano do mundo moderno. Cansados de segurança e conforto (não por acaso, os revolucionários sempre saem das classes mais abastadas ou médias), entediados, e sendo formados para ser a medida do mundo e da verdade; estes indivíduos frágeis sonham com uma harmonia perdida, esplendor que, para se realizar, só pode ser também um “sonho de domínio”, numa tentativa de comunhão para se auto-afirmar desesperadamente.  

Por isto, os regimes totalitários sempre explodiram o cotidiano, e contra a banalidade da vida burguesa, implantaram o estado de terror e guerra contínuos. Afirma Pascal Bruckner, sobre a contradição entre as promessas de “fervor sublime” e a lógica de rendimento do sistema capitalista:

“A grande utopia dos anos 60, como vimos, foi decretar o prazer perpétuo, o estado de felicidade permamente. Tratava-se de cristalizar o escoamento desordenado dos dias em um só instante de fervor sublime, de imergir o cotidiano na efervescência. Utopia magnífica e terrível da qual os situacionistas foram os principais porta-bandeiras. Mas os inimigos do tédio, repetindo-nos que “os homens vivem em estado de criatividade 24 horas por dia” (Raoul Vaneigem) adotam a respeito do prazer uma lógica do rendimento igual à do sistema industrial. Nos dois casos é preciso maximizar, submeter tudo ao imperativo da rentabilidade. As volúpias, assim como a produção, não poderiam tolerar o menor intervalo. É por esta mesma razão que os partidários da intensidade manifestam a respeito desta existência imperfeita a mesma animosidade que os cristãos de antigamente a respeito da condição humana”.

A revolução é um ato contra a memória. Ela rompe com a tradição sem superá-la, fadando-a ao fracasso e à violência. O que distingue o homem do animal é sua capacidade de reter memória, como sabia Ortega y Gasset, “romper a continuidade com o passado é querer começar de novo, é aspirar a descer e plagiar o orangotango”.

Afinal, devemos criticar ou apoiar o mundo moderno? Falso dilema. Devemos avaliar perdas e ganhos, para com isto, reconquistar nossa experiência. Da ambivalência, não se pode fugir. Não há motivos para apologia ao mundo que construímos, seja ele qual for; tampouco, há razões para tentar destruí-lo. Na verdade, possuímos menos controle sobre a realidade, do que acreditamos ter no mundo moderno, onde tudo parece ser tão perecível. Somos mais irrelevantes do que nossa vaidade quer crer.

5.

É possível amar no mundo hipermoderno? De cara, é possível amar em qualquer época do mundo. O amor é um elemento permanente da vida humana, que se exterioriza de diversas maneiras, mantendo ainda assim, uma unidade. A questão é que nossa época mina as bases que possibilitam a entrega nas relações afetivas. Sem sair da frente do espelho, não é possível encontrar-se de verdade com o outro, e descobrir a si próprio.

As pessoas são cada vez mais senhoras do seu tempo, usufruindo da liberdade para escolher como irá preenchê-lo. Apesar das obrigações, no estudo ou no trabalho, estas não chegam nem de longe, perto das que já tivemos, como a responsabilidade com uma comunidade, o respeito para com um bem maior, etc. Ainda assim, essas pequenas responsabilidades são tidas como um peso escorchante para muitas pessoas, que sem dar-se conta, viraram escravas da própria vontade.

Ao mesmo tempo em que, as pessoas se tornaram mais vaidosas, mimadas, fúteis, e tratam seus sentimentos de maneira ainda mais perecível; cresce, quase como um desespero, a ânsia pelo encontro de um grande amor. Sentindo a ausência de algo com verdadeira profundidade, o frágil indivíduo hipermoderno lança-se ao mundo em busca disso, fazendo do amor uma tábua de salvação, da qual a generosidade – que lhe é marca – impede esse encontro desesperado. O fruto dessa dialética entre ausência e ensimesmamento, é o fortalecimento das fantasias, ilusões, ou seja, das afeições imaginárias.

Pior e mais exemplar deste mundo do que a descartabilidade dos “ficantes” é a sucessão de paixões fluídas. Se no primeiro caso, temos a efemeridade do corpo e do sentimento, onde – de partida – proíbe-se a entrega e o envolvimento; no segundo caso, temos a efemeridade do amor, com paixões relâmpagos, que tudo eram num dia, e nada se tornaram no outro. Da entrega absoluta e imediata à “desentrega”. Em ambos os casos, desaprendemos a respeitar o sentimento alheio; pois, tratamos nossos semelhantes como “uma porção de comida rápida”, previamente embalada a espera do contato rápido, pronta para nos alimentar brevemente.

Um sintoma disto é que em busca deste sentimento, “de que algo infinito foi perdido” e que precisa ser prontamente recuperado, passamos a encarar a inveja, a dor, as lágrimas, não como elementos constitutivos da vida humana em sua ambivalência, mas como obstáculos que precisam ser eliminados. Mas, na vida, tudo é feito de dores e alegrias, lágrimas e risos. Só na boca de qualquer idiota, as frases já estão feitas: “seja feliz!”, “busco leveza e alegria”, etc.

Longe de retomar a experiência, este homem que suspira lentamente por algum momento de profundo, seja por paixões fluídas ou num gozo desesperado com um desconhecido, é guiado pela falta de constância. Nem mesmo temos mais tempo para cultivar nossos desejos. Pelo contrário, dominado pela fantasia da vez, que no dia seguinte, já se desfaz, agimos de maneira impulsiva, esperando o cumprimento dessa vontade, tão firme quanto à constância de uma geleia. Se o amor que queremos dar é efêmero, o nosso ser também o é.

No centro deste homem sem responsabilidades, personalidade, constância, encontra-se a vaidade. Mesmo quando ele pensa estar agindo com alteridade, ao ansiar um encontro com o outro, é tomado, na verdade, por uma fantasia própria que deseja se cumprir. Ao não ver tal promessa cumprida, ele revolta-se contra quem isto lhe negou, e age de maneira arrogante e mimada, mostrando que de amor: nada sabe.

A “outra face da moeda” deste homem diluído encontra-se na figura do Don Juan pós-moderno (que obviamente, também serve as mulheres), que possui como propósito o encontro com a humanidade, simbolizado no descarte afetivo. Hoje, não mais você; amanhã, continuo com aquela outra; depois de amanhã, tentarei a próxima que irei conquistar. Como se frequentasse um grande mercado afetivo, tendo em suas fantasias e quereres uma moeda, esta triste figura fez de si e do seu afeto uma “mercadoria universal”, onde as pessoas são trocadas com a mesma desenvoltura e facilidade com que se faz com as coisas no mercado. Não passa de um pobre diabo assustado, vivendo “em baixo da cama”, com medo da entrega e da realização do amor no mundo, porque longe da certeza, estes dois elementos sublimes só nos trazem a incerteza, a possibilidade, o horizonte da dor, e não raro, do sofrimento e prazer mais ambíguo e conflitante que se pode ter como experiência. E nesta falta de compromisso e respeito, cristaliza-se a grande feiura afetiva de nossa época.

Em O Banquete de Platão, Eros aparece como um daimon, intermediário entre deuses e homens, criador de laços entre eles. Eros é filho de Póros (o estratagema) com Penia (a penúria), e que por ser concebido no dia de nascimento de Afrodite, ama o belo. Eros é carência que busca plenitude. Por isto, deseja o profundo das coisas. Se fosse completo, não a amaria, pois já a possui. Se fosse puro corpo, julgar-se-ia completo e nenhum reencontro real poderia desejar.

Ao contrário da maleabilidade das fantasias, o amor é durável, perene, imortal. O amor é a magia de um mundo desencantado, é o desinteresse de um mundo de interesses, é a inutilidade no mundo útil do cálculo racional dos adultos. Amor é um desejo cultivado, e não uma fantasia. No entanto, será que ainda existe espaço para o amor numa vida em que se cultua cada vez mais à coisificação do prazer? Num tempo hedonista, dominada pelos sentidos, qual a pretensão do amar?

Acontece que, o amor não é uma relação pragmática, um encontro entre duas pessoas, uma relação sacramentada, um namoro ou um casamento. O amor é um sentimento profundo e amplo: é fazer da sua liberdade, o desejo de ver os outros.  O amor encontra-se na solidariedade da criança que divide o seu lanche no colégio, no olhar fraterno do velho avô com o seu novo neto, no cuidado dos pais com seu filho pequeno e indefeso, no sexto sentido da mãe, nos olhares apaixonados dos amantes, no encontro do professor que ajuda seu aluno, no perdão da mãe que vai visitar o seu filho na cadeia. O amor é desinteressado, não quer mudar o mundo. Ele é trivial, pois enxerga o outro em sua inteireza, pois, independe de virtudes e defeitos, perdas e ganhos. Amar é enxergar o mundo com solidariedade, e não como uma criança mimada querendo adapta-lo aos seus impulsos e fantasias.

Neste sentido, Camus é preciso quando demonstra a incompatibilidade entre o amor e a revolução. O homem revoltado ama um homem que ainda não existe, nem irá existir, e que não passa de uma projeção de suas fantasias. Ao contrário, o amor é uma expectativa real de troca, uma entrega pelo que não se possui, estando dessaturado de vontade, individualidade e vaidade; mas que, espera a reciprocidade. Ou seja, um ato de fé. Porque, o amante busca no amado a essência que não possui. Nisto, supre a falta e se torna pleno, de modo dialético, recíproco.

Portanto, a postura de amor diante do mundo exige o reencontro com a experiência. Só com a unidade do nosso viver, podemos diante das ambivalências da vida, nos procurar no encontro com o outro. Recuperar a dignidade das relações afetivas é preservá-la da falta de sentido deste mundo efêmero, caótico, descartável. É fazer do corpo uma fortaleza, morada viva, e não um escravo do impulso. David Foster Wallace sabia disto quando dizia que “a liberdade verdadeira envolve atenção, consciência, disciplina, esforço e capacidade de efetivamente se importar com os outros – no cotidiano”. Essa é uma liberdade real, humana, generosa, amante, que merece ser vivida.