“O mundo jamais o desencorajará de operar na configuração
padrão, porque o mundo dos homens, do dinheiro e do poder segue sua marcha alimentado pelo medo, pelo desprezo e pela
veneração que cada um faz de si mesmo. A nossa cultura consegue canalizar
essas forças de modo a produzir riqueza, conforto e liberdade pessoal. Ela nos dá a liberdade de sermos senhores
de minúsculos reinados individuais, do tamanho de nossas caveiras, onde
reinamos sozinhos.
Esse tipo de liberdade tem méritos. Mas existem outros tipos
de liberdade. Sobre a liberdade mais preciosa, vocês pouco ouvirão no grande
mundo adulto movido a sucesso e exibicionismo. A liberdade verdadeira envolve atenção, consciência, disciplina, esforço e
capacidade de efetivamente se importar com os outros – no cotidiano, de
forma trivial, talvez medíocre, e certamente pouco excitante. Essa é a
liberdade real. A alternativa é a
torturante sensação de ter tido e perdido alguma coisa infinita.”
In Memoriam de David Foster
Wallace. Que me legou com estes dois
parágrafos, o ímpeto criador, dando vida e ânimo ao texto.
Era abril de 2009, deitava calmamente num banco à espera de mais uma
aula, provavelmente aborrecente, enquanto tinha em mãos um livro de Fredric
Jameson: Pós-Modernismo: a lógica
cultural do capitalismo tardio. Antes mesmo de entrar na graduação, o
assunto já me fascinava por abordar os estudos culturais de maneira menos
trivial ao qual estava acostumado. Já o tinha tido em minhas mãos em outras
oportunidades, mas me considerava, na época, burro demais para entender
qualquer coisa expressa pelos jargões herméticos de Jameson.
Eis que, logo no início da leitura (sabe-se lá Deus em que página) encontro
uma daquelas passagens que te marcam profundamente e, sem você perceber,
grava-se na “memória da alma”, para de lá, nunca mais sair. Não lembro a
expressão exata, mas dizia algo do gênero: “num mundo modernizado, onde os
homens movem a qualquer momento uma montanha, e dominam a natureza, a ideia de
essência ou algo constante não poderia nos parecer mais estranha, num mundo
onde tudo é percebido como mudança”. Não sei qual seria minha reação ao ler
novamente os livros de Jameson, depois de tantos anos e descontinuidades. Mas
isso, pouco importa. Naquele momento, a leitura condensava em mim, uma
inquietação, fruto de uma ambiguidade.
Antes de entrar na graduação, Robert Kurz e toda sua trupe da Krisis
(Scholz, Jappe, etc.) me causou comoção. Uma crítica radical ao valor e ao
moderno sistema produtor de mercadorias (incluindo, o socialismo real); a
negação radical (com a antipolítica, antieconomia, etc.); a radicalidade da
preguiça, culminando no manifesto contra o trabalho. Uma crítica radical a toda
ideia de fetiche, ao mercado, ao trabalho, a cisão de gêneros, e não a questões
específicas do marxismo tradicional. Junto com isto, vieram os situacionistas e
Debord, a admiração pelo espírito de 68, o Foucault do Vigiar e Punir, Deleuze, Negri, Woodstock,
hippies, os filmes de Godard, Bertolucci, etc. Ainda que, avesso a classificações,
era um típico libertário ao meu modo. Meu agir no mundo estava (quase que)
inteiramente mediado por essas crenças.
Entretanto, toda essa ânsia juvenil por liberdade, era contrabalanceada
parcialmente por certas leituras de Lukács; que de alguma forma, ressoava uma
parte da crítica reativa (conservadora) ao “mundo burguês”. A minha tendência
ao relativismo, ao historicismo, e ao culturalismo, morria no berço. A leitura
de Jameson, acompanhada na mesma época pela de Terry Eagleton, em sua labuta
contra a pós-modernidade, colocava-me em outra situação: perceber nesse
espírito libertário, uma parte integrante do “sistema”. A associação entre o pós-modernismo e o
capitalismo pós-industrial, tendo no espírito do maio de 68 o seu inaugurador
simbólico, tomou-me de assalto, ampliando minha imaginação e entendimento. Só
muito tempo depois, desenvolveria esta percepção ainda tão vulgar.
Seja como for, simbolizada nesta ambiguidade (ainda que mal trabalhada);
em mim, permaneceu viva uma sensação assustadora, ainda que, prematura: existia no desejo de ruptura e de negação
ao mundo presente, uma confirmação deste mundo, ativando suas engrenagens (o
progresso), e fazendo sua dialética prosseguir. Na minha mente de vinte
anos, o espírito de 68 deixou de causar sonhos românticos com a “imaginação no
poder”, e passou a representar outra coisa: parte da “cultura do novo
capitalismo”. É da minha personalidade, ser avesso a certas convenções, mas
percebia no “ensimesmamento” em nome da liberdade da moçada libertária mais uma
delas. Somam-se a isto, experiências concretas que, mostravam-me a irresponsabilidade,
a imaturidade, a falta de compromisso e lealdade. A busca histérica por um
ideal de mundo sempre resulta em seu contrário. Sobre isto, um trecho de A Euforia Perpétua de Pascal Bruckner, está
repleto de razão:
“O que ocorreu para que a crítica da sociedade de consumo
tivesse tão rapidamente a partir dos anos 60, conduzido ao triunfo do
consumismo? É que as palavras de ordem
lançadas à época: “Tudo imediatamente”, “Morte ao tédio”, “Viver sem
prorrogação e gozar sem entraves” se aplicavam menos ao domínio do amor e da
vida do que ao da mercadoria. Acreditava-se estar subvertendo a ordem
estabelecida, mas favorecia-se com total boa fé a propagação do mercantilismo
universal. É no plano da fome e da sede que todas as coisas podem se tornar
imediatamente acessíveis, já que o espírito e o desejo têm seus ritmos
próprios, suas intermitências. A intenção era libertária, o resultado foi
publicitário; liberou-se menos a libido do que o nosso apetite por compras sem
limites, nossa capacidade de agarrar sem restrições todos os bens. Bela imagem
do revolucionário como prospector oficial do capital é no que se transformaram
afinal o movimento operário, o marxismo, e a esquerda radical, capazes de
criticar uma falha no sistema, mas de permitir-lhe se modificar a um custo
mínimo. Um pouco como aqueles hippies que descobriram lugares sagrados de
turismo na Ásia, na África, ou no Pacífico trinta anos antes de todo mundo, mas
que eram movidos pelo desejo de fugir e se isolar. É absurdo criticar o
consumo, luxo de crianças mimadas. Ele tem de atraente o fato de oferecer um
ideal simples, inesgotável, acessível a qualquer um, contanto que esteja
solvente. Não exige outra formalidade senão ter vontade e pagar. O consumidor é cevado, saciado como um bebê
alimentado a colheradas. Seja o que for que achemos disso, divertimo-nos
bastante, pois, como na moda, adotamos sofregamente o que é proposto como se
tivesse sido escolhido por nós”.
Faço todo esse preâmbulo a uma época de minha vida
intelectual, mas que foi ainda mais significativa em casos concretos (não só na
militância), para introduzir um tema que me é caro: a revolta permanente não só
como elemento integrante, mas uma espécie de lança do mundo moderno, ao mesmo
tempo, universalizando-o em suas bases e nos trazendo a sua decadência. O homem revoltado, mostrado por Camus, é a
herança do mundo moderno, contra o qual ele aparentemente se contrapõe. Homem
permanentemente revoltado que hoje, fez da indolência militante (de longe, generosidade;
mas, de perto, busca pelas fantasias próprias de um paraíso particular) a sua
morada, e da revolução um contínuo integrado, sendo realizada diariamente como
uma infernal previsão, levando ao limite aquela incompatibilidade tão bem
notada por Camus entre a revolução e o amor.
Não me excluo de nada que aqui analiso, pois, tudo o que observei foram
frutos de certas situações que vivi, em lugares-limites que fui, e em
experiências que observei. Tive que me
debruçar, para investigar a revolta em mim mesmo. Este texto é também uma
história de busca e um método de autoconhecimento. Em certa medida, é uma
prazerosa e dolorosa autocrítica.
Desde então, assusta-me de sobremaneira, a interligação entre: o homem revoltado com o mundo que lhe
cerca; o pragmático liberal (de direta ou esquerda) que acredita na
estabilidade do mundo institucional, sem vislumbrar a sociedade sufocada por
tantas camadas formais, perdendo qualquer substância que lhe dê sentido e
comunhão; e o libertário utilitarista, que acredita no poder do
desejo individual como remédio para todo mal.
Olhando assim, a questão parece ser: apoiar ou negar o mundo que aí se encontra? Porém, esta pergunta
cria uma espécie de caixa com fundo
falso, onde até a saída não passa de uma miragem. A solução para este enigma reside na falta de solução. Todas elas
são irrelevantes, afinal. É preciso largar este falso dilema, para reconquistar
nossas percepções e o senso de responsabilidade de ação no mundo: ser
responsável por seus atos, reconhecê-los, e assumir as consequências. A dignidade mora na responsabilidade para
com o outro.
Não há mundo melhor. Somos seres incompletos, aspirando alguma
religação. A incompletude e a ambivalência das situações práticas do nosso
mundo material fundam a cultura. Tentar eliminar os limites da vida é – de
partida – revoltar-se contra a própria estrutura da realidade, dos sentimentos
que circulam entre todos nós, e fazem a ponte entre a objetividade e a
subjetividade, nos comunicando. Estar no mundo, buscar sua voz interior,
compreender suas circunstâncias e o seu ser, obriga a uma visão de mundo que
contemple sempre as perdas e os ganhos, sem grandes aspirações políticas totais.
Sem ilusões da carne: o pragmatismo como cálculo social e afetivo. A vida reduzida a política torna-se pobre,
por que não é nela onde se encontra os seus grandes enlaces e encontros. Contra
esta política como doxa do mundo moderno,
a arte virtuosa parece o último refúgio da verdade. A literatura de
Dostoiévski expressa isto.
Seja como for, neste texto, trato de uma inquietação. O que me preocupa é
mais certa visão de liberdade, de humanos vaidosos e entregues ao culto de si
mesmo, que tenciona a sociedade moderna aos seus limites de destrutibilidade.
Meu interesse é investigar e refletir o mundo que se perde em busca dessa “liberdade
de sermos senhores de minúsculos reinados individuais, do tamanho de nossas
caveiras, onde reinamos sozinhos”.
A liberdade de venerar a si mesmo, dogmática, inflexível, que não se
mistura, e tem “nojinho” da dura realidade. Em contraposição, a liberdade que
valoriza a disciplina, a lealdade, o compromisso, o desejo cultivado e não as
fantasias e os impulsos mais primitivos, sem que deles se prescinda. A
liberdade que encontra a sua voz interior, a sua personalidade. Esse texto não é uma peça de acusação
política, mas um exercício de amor à vida que merece ser vivida, com
sinceridade, verdade, firmeza, constância, bem-aventurança. Dedico-o a
indivíduos de verdade: os que não se dobram diante da crise de personalidade.
1.
A chegada ao Ocidente de livros gregos e latinos, na baixa idade média,
ao mesmo tempo em que, a escolástica entrava em crise, criou descontinuidades
na história intelectual. A partir, sobretudo, do Século XIII, crescendo nos
dois séculos posteriores, desenvolveu-se na Itália, uma tendência a atribuir
valor elevado aos estudos das litterae
humanae, tornando a Antiguidade Clássica (grega e latina), um paradigma
para as atividades culturais e artísticas. Neste sentido, surge o
"Humanismo", indicando a tarefa do literato, que iria além do ensino
universitário, entrando pela vida ativa e tornando-se "nova
filosofia".
O “Humanismo”
foi o primeiro adversário mais sério da escolástica. Ele representava certa
hostilidade contra o dogma religioso, e tendia a tirar a autoridade dos
clérigos e passar para os cortesãos e literatos. Outra característica desta
época é a valorização da capacidade racional, como elemento que nos levaria ao
conhecimento da realidade, o que costumamos chamar de Racionalismo. É também
uma época de valorização do conhecimento empírico e do hedonismo.
Esse período de modificações na história intelectual transcorre
paralelamente ao “Século de Ferro”, situado entre 1550 e 1660, tomando como
referência as grandes transformações sociais, políticas e econômicas trazidas
pela implantação do capitalismo, e a outros acontecimentos históricos, como a
Guerra dos Trinta Anos, que delineia a paisagem política e cultural da Europa
moderna. Uma mudança ocorre: na vida
material das pessoas, com a ascensão da burguesia, renascimento do comércio,
crescimento das cidades; na maneira como as pessoas enxergam e se sentem parte
do mundo; e no clima intelectual da Europa. Essas mudanças na mentalidade
são sentidas nas obras de pensadores como Copérnico. O deslocamento da terra,
obra prima do Deus criador, do centro do universo significou que o homem, tido
como o supremo ato da criação, deixou também de ocupar seu lugar de criatura
sujeito a um Deus. Mas, um personagem, em especial, destaca-se como filho dessa
mudança: Francis Bacon. Ele
incorpora esse novo espírito da crítica, assentando o que viria a ser a ciência
moderna.
Francis Bacon destacou-se pelo combate as concepções da
idade média e pela criação de outros princípios, fundando a ciência moderna, em
seu Novum Organum. Nessa obra, Bacon
tentou demonstrar as inadequações da ciência aristotélica e do apriorismo
tomista. Ele argumenta que a ciência aristotélica por ser meramente dedutiva,
não proporciona um método investigativo e instrumental, que possa operar na
natureza, e chegar a fatos novos. Bacon propôs o método indutivo, por onde –
através do experimento – poder-se-ia chegar a postulação de leis universais,
sobre a base das instâncias observadas. Embora, a criação desse método tenha
sido mais especulativa, as críticas de Bacon à tradição aristotélica abriram
novas partas para o pensamento científico.
Desta forma, a partir de Bacon, surge a crença de que a natureza material
é um código escondido, que não se revela diretamente ao homem, disfarçando-se.
Portanto, para compreendê-la, seria
necessário, através de um experimento, dominá-la para obriga-la a dar uma
resposta. E este consiste, portanto, na instrumentalização das forças
naturais, visando a sua apropriação. Kant, mais tarde, resumirá o espírito
dessa nova ciência ao dizer que o cientista não se coloca diante da natureza
como um observador, de maneira contemplativa, mas como um juiz de instrução.
A ciência moderna “deverá ser
ativa, operatória, eficaz e não contemplativa e verbal. Ela é intervenção na
natureza, modificação física desta. Essa relação ativa, e até violenta,
caracteriza a pesquisa e aplicação”. (HOTTOIS, 2008: p.66). A ciência moderna precisa ter
operacionalidade e eficácia, ao invés de ser contemplativa e verbal. Ela é
instrumental, por que precisa intervir na natureza, permitindo que o homem seja
senhor e mestre dela. O indivíduo é colocado no centro deste projeto ao isolar
elementos da natureza, e não contemplá-la em sua presença total.
Os experimentos são realizados dentro de certas condições, a partir de
hipóteses e perguntas pré-estabelecidas, recortando o fenômeno das suas demais
relações. O que é examinado não é a realidade em sua presença total, com suas ambiguidades,
mas certas possibilidades, isolando a concretude. A ciência moderna esconde a ambivalência do mundo. A própria
dialética inerente ao homem, com sentimentos ambíguos que circulam e congelam o
tempo, é suprimida. Porque a realidade concreta é um mistério, e só pode ser
apreendida, em certos aspectos, por contemplação e observação.
Com o fim do espírito contemplativo, a ciência instrumental – e
consequentemente, a técnica e a modernização – insere um elemento subjetivista inegável. Representado pela supremacia do interesse, da ideia de meios e fins, e
de adequação (razão subjetiva), sobre as coisas racionais por si mesmas (razão
objetiva). A ciência passa a indagar não a substância, mas a função. A
ciência moderna nega as pretensões essencialistas da metafísica. Essa nova
ideia de ciência, metodologicamente hipotética e controlada exige adaptações às
novas instituições, academias, e laboratórios, criando uma separação entre
ciência e fé.
A natureza deixou de ser uma
experiência real, ambivalente; pois, ao mesmo tempo em que, nos reconfortava
com comunhão, ameaçava nossa auto-conservação. Dominando-a, para conhecer
suas partes específicas e melhor conservar-se, colocamo-la como objeto de
experimento científico. Para compensar
essa perda da totalidade e da experiência real, entra em campo o elemento da
medição e exatidão matemática. Mas esta, também vem do sujeito investigador,
que não pode compensar a perca das relações reais, da experiência, e da
presença total da realidade. E disto, decorre o subjetivismo moderno, que – de certo modo – nega a realidade concreta.
A nossa visão da natureza material passou a ser modelada pelos nossos
interesses. O indivíduo encontra-se, então, no centro e no topo da realidade. E a grande promessa do mundo moderno é
que por meio da ciência e da técnica, o homem poderia se libertar da barbárie,
da fome, da ignorância, da injustiça, e se autoconservar melhor. Como
desejava Bacon, o saber deveria imperar sobre a natureza desencantada, não
reconhecendo limites ou barreiras. “No
trajeto para a ciência moderna, os homens renunciaram ao sentido e substituíram
o conceito pela fórmula, a causa pela regra e pela probabilidade” (ADORNO;
HORKHEIMER; 2006). Recusando aquilo que não se enquadra nos critérios de
cálculo e utilidade, a ciência moderna busca o método para operar os fatos a
serem ordenados, classificados, permitindo a explicação, a previsão e o
controle.
Em compensação, com seus experimentos, a ciência
moderna alargou o campo das possibilidades, obtendo muitos resultados, que
geraram aplicações técnicas, e posteriormente, processos de modernização. Existindo, desta maneira, uma relação entre
uma nova concepção de ciência, mais instrumental, que leva a conquistas
técnicas; novas relações sociais, com a ascensão da burguesia; uma nova maneira
de ser e estar no mundo; e, novos conceitos introduzidos na filosofia moderna.
Representando um novo pensamento e uma nova sensibilidade que emergiram,
resultando em profundas transformações socioculturais, com a construção de novas sociabilidades e sensibilidades.
A novidade incessante, gerada pelo domínio técnico, acelera o tempo, abre
o mundo, dando margem a uma nova maneira de pensá-lo, de fazer cultura. O
perpétuo vir-a-ser, turbilhão moderno, desbrava distâncias, vai “desmanchando
no ar” o que antes era sólido. A ciência moderna, as inovações técnicas, a
modernização das cidades, alterará profundamente as paisagens e cartografias da
vida. O trem, as estradas, as maquinarias, as fábricas, o telefone, e tantas
invenções, invadirão o “mundo das tradições”. Se ela nos trouxe mais segurança e comodidade, trouxe também, perda da
experiência da presença total (e ambivalente) da realidade, da contemplação, o
esquecimento do transcendental e dos valores que dão sentido a uma comunidade,
agora meras formas abstratas.
2.
O projeto moderno coloca o indivíduo
no centro do mundo, ao prometer que com uso da razão subjetiva (pragmática,
instrumental, etc.), do esclarecimento, das luzes, da ciência moderna, nos autoconservaríamos
melhor, através de um ordenamento racional e técnico. A modernidade marca
também a ascensão do mundo das instituições, do estado-nacional, e da
democracia formal, inaugurando a “Era dos Direitos” (Bobbio).
Este projeto é operado, como notado por Max Weber, através da ciência e
do Estado. Neste sentido, Weber irá defini-la como a época da “organização
capitalista racional assentada no trabalho formalmente livre”. Ou seja, é a era
do advento da “organização industrial racional”, orientada para um mercado, em
que as empresas não estão mais vinculadas a uma unidade doméstica, e criam sua
“contabilidade”. Para isto, o capitalismo não pode prescindir da ciência
moderna e da técnica. Esse processo de racionalização penetra as instituições,
com o Estado-nacional, que tem sua administração sendo realizada por especialistas
e assalariados, ou seja, por uma burocracia
independente.
Na cultura, segundo Weber, ocorre um projeto de autonomia, correspondendo
à ideia de domínio pessoal nas esferas de valoração humana (como a ciência, a
arte e a moral), em detrimento das relações e símbolos metafísico-religiosos
que, anteriormente, davam sentido e comunhão à vida humana. Weber denomina este
processo de “desencantamento do mundo”:
“racionalização” crescente que se manifesta na conduta humana, ao invés das
explicações mitológicas ou simbólicas.
Não só pelo crescimento do mercado, mas por ele ter se tornado central em
nossa vida cotidiana, podemos falar também – no mundo moderno – numa lógica abstrata do valor. Independente
dos formidáveis benefícios que ganhamos com o mercado, não há como negar que as
relações objetivas entre as pessoas nele é uma relação – em certo sentido –
entre coisas. Ou seja, as relações entre as pessoas no mercado são entre
portadores privados de dinheiro/mercadoria. E já que estas relações são
mediadas pelas mercadorias/dinheiro, elas tendem a autonomia, podendo afetar a
maneira como nos relacionamos com as pessoas em outras esferas. A estrutura mental dessa lógica abstrata do
valor (sua equivalência universal) influencia na maneira como produzimos
cultura, e de como lidamos com o mundo.
No Fausto de Goethe, o diabo
Mefistóteles costumava dizer: “tudo que existe merece fenecer”. Na roda-viva dos processos de modernização
e nas engrenagens do progresso, tudo parece se transformar em perecibilidade, mudança, devir. Tudo nos
parece descartável. Neste sentido, o torvelinho moderno gera um
impasse: promete felicidade, progresso, transformação do mundo ao redor, mas, ao
mesmo tempo, nos tira a identidade, os encontros míticos e simbólicos, a
constância, as bases transcendentes, aquilo que é sólido. A modernidade ultrapassa as fronteiras entre nações, religiões e
culturas, numa espécie de universalismo formal; porém, de maneira paradoxal, vivemos
na eterna desintegração, na cultura do repúdio (onde tudo está sempre a se
reciclar, começar do zero, de novo e de novo), num turbilhão de mudanças,
disputas, e contradições entre o antigo e moderno, gerando mal-estar e angústia.
Pois, no cerne do projeto moderno há uma promessa de felicidade, baseada na ideia de que a humanidade está
sempre progredindo em direção à civilização. A justiça e a bem-aventurança saíram
do céu e vieram para o mundo terreno, num processo de secularização. O paraíso
não deveria ser mais esperado para o além da morte, mas dever-se-ia ser
construído aqui e agora, desde que se confiasse na razão, nas instituições, na
ciência. “O paraíso terreno é onde estou”, dizia Voltaire. A ideia de progresso suplanta o da eternidade, e o futuro é o refúgio
da esperança.
Mas, evidentemente, as promessas feitas pela modernidade não poderiam ser
cumpridas. Otimista com o futuro,
embriagado de expectativa pelo paraíso próximo, da felicidade perene, e do gozo
permanente, livre de todos os males e limites; os modernos se depararam com o
abismo, o Século XX. Duas grandes guerras, genocídios, holocaustos,
ditaduras coletivistas que matariam mais do que quaisquer outras na história da
humanidade, desagregação social, anomia, desenraizamento, perene mal-estar. Se antes admirávamos o mar e a promessa de
terra futura onde jorraria leite e mel, de dentro do Titanic, o navio-símbolo do progresso; agora, voltamos nosso olhar
para dentro deste navio (ou para dentro de nós mesmos), fazendo dele o próprio
palco de nosso prazer efêmero, que nada mais é do que uma revolta permanente contra
a realidade. Pois, começar sempre de novo é esquecer aquilo que já se foi, onde
tudo é destruído – ao ser integrado – em busca de uma salvação hipotética:
salvemos todos, ao tudo destruir, para do “zero” o mundo recomeçar.
O fim da Grande Guerra e a irrupção de 1968 foi significativo no novo
estágio do capitalismo e daquilo que gosto de chamar de “hipermodernidade” (Lipovetsky). A base do capitalismo deixa de ser
a poupança e o trabalho, e passa a ser o consumo e o desperdício. A vertigem de
1968 inaugura um novo dogma de felicidade, adaptado aos novos tempos, contra a
visão restritiva. Agora é proibido proibir, mesmo que isto seja uma abstração
sem sentido. A felicidade virou um
imperativo, e a redenção passa pelo corpo.
O projeto moderno concretiza-se na globalização, no império das
instituições globais (ONU, UNESCO, etc.), na mercantilização da vida, na
onipotência do indivíduo, mas também, na universalização do consumo, na
ampliação do conforto, e na segurança para lidarmos com nossas próprias vidas;
dando-nos ainda mais mostras de suas consequências. A ideia de progresso foi
ressignificada, e continua presente na gramática política e no cotidiano das
pessoas, não sendo mais defendida de maneira ingênua. O moderno turbinou-se, e como em todo triunfo falta equilíbrio, já se
nota no ar o cheiro putrefante de degradação, decomposição e decadência.
A Hipermodernidade é o “império do efêmero” (Lipovetsky), uma cultura do excesso, do sempre mais,
pois tudo se tornou intenso e urgente. A sociedade voltou-se para o hedonismo,
e agora podemos tudo: pois, temos um dever de felicidade (e não mais um
direito). O foco é o prazer mais imediato, e não a realidade mais profunda, e ai
de quem contrariar as fantasias e os desejos alheios. O nosso tempo, ao acompanhar a intensidade e (falta de) sentido de
nossa vida, virou flexível e fluído. A instabilidade é a regra.
Entregue as suas fantasias, ao dirigir os “seus reinos pessoais”, o homem hipermoderno desfruta de sua liberdade a partir de uma postura impulsiva, e não raramente, histérica.
Sem voz interior, mudando a cada
instante, ensimesmado, mentindo para si mesmo, perdido sem a tradição e sem
poder contar com reflexões a cerca de sua conduta, este sujeito vira um
náufrago da existência, uma espécie de
“homem-geleia”, onde a inteligência já virou uma pasta, e a confusão e
falta de sentido predominam em suas atitudes. Em síntese, perdeu-se a experiência.
3.
A carnavalização dos paradoxos e a destruição do referente, marcas do
mundo hoje, possui sua morada no subjetivismo
da filosofia moderna. Para René Descartes, na interioridade do homem, ou
seja, através da razão humana, a luz natural que o homem possui em si mesmo,
sua racionalidade, é que se pode chegar à verdade, e desta maneira, justificar
a ideia de ciência, através do método e da dúvida.
Portanto, o conhecimento apodítico não se encontra numa entidade
objetiva, ou na estrutura da realidade, mas no sujeito pensante. Com Descartes
e Francis Bacon, observamos que nas origens da questão do conhecimento para o
mundo moderno, encontra-se o “primado do sujeito”. Com Descartes, exacerba-se a
estranheza e revolta quanto à incerteza do conhecimento humano, o que
evidentemente levaria a decepções. Logo em seguida, um século depois, chegamos
ao empirismo de David Hume, que nega a possibilidade do conhecimento apodítico,
colocando até as noções básicas da lógica como incertas. Nascemos com uma folha
em branco, aonde o conhecimento sensível vai moldando-nos. O ceticismo de Hume
já é reflexo desse primado do sujeito colocado pela ciência moderna e pelo
racionalismo, sendo pessimista quanto a sua solução.
Num esquema realista, o
conhecimento é o conhecimento das coisas, e as coisas são transcendentes a mim.
Num esquema idealista, como o
kantiano, pode não haver nada a não ser minhas ideias, e assim, as coisas são
algo imanente, e meu conhecimento é de minhas próprias ideias; ou minhas ideias
são das coisas, onde estas dão-se em minhas ideias, sendo ideias das coisas, e
não só minhas, aparecendo como fenômenos.
Kant distingue a razão pura da razão empírica, e a razão prática da razão
teórica. A razão teórica quer estudar o objeto em si (por exemplo, o homem em
si, a antropologia filosófica), o que ele é; enquanto, a razão prática quer
estudar a forma do sujeito cognoscente realizar-se no mundo: o que eu devo
fazer. A fonte do conhecimento tanto da razão prática como da razão teórica
poderia ser a razão pura ou a razão empírica. Nesta, chega-se ao conhecimento
procurando-o na experiência, na realidade empírica; já na razão pura, chega-se
ao conhecimento procurando-o nas ideias inatas, com as quais já nascemos. Kant
chega a seguinte conclusão: só existem a razão teórica empírica e a razão
prática pura. Então, o caminho da moral é exatamente o oposto da razão
empírica, pois existe uma lei moral dentro de mim (o imperativo categórico). E
só é possível conhecer as coisas a partir da experiência. Assim, nada
conhecemos da natureza em si, mas só dos nossos esquemas mentais projetados.
4.
O indivíduo ensimesmado do mundo moderno, que se considera a própria encarnação da verdade, mostra grandes
doses de vaidade. E esta, é o desejo de atrair a
atenção e admiração das outras pessoas, cristalizando uma imagem pessoal forte
que precisa ser reverenciada. Geralmente, pessoas muito vaidosas possuem
problemas de autoestima, não pela falta de atenção, mas pela personalidade
frágil: basta alguém não comprar sua aparência de vencedor, para entrar em
parafuso.
O ser humano é incompleto, traz dentro de si
um vazio interior. Mas, quanto mais frágil é sua personalidade, quanto menos
ele tem consciência de si, dos seus méritos e defeitos, mais precisa da
aprovação alheia. A vaidade é reforçada para compensar um vazio interior aterrorizante.
Vaidade é medo, por fim. Medo do fracasso, porque ele nos humaniza,
mostra que não somos fortes como um Deus imponente.
Só um indivíduo frágil, sem voz interior, sem consciência, sem vida
própria, e ao mesmo tempo, tão dono de si mesmo e vaidoso, pode se dissolver na
massa. O “homem-massa” não faz parte
de uma classe, mas é uma forma de viver o mundo de maneira peculiar, ao não
possuir preparo para o seu autogoverno. Assim Ortega y Gasset define o
“homem-massa”:
“É o homem
previamente esvaziado de sua própria história, sem entranhas de passado e, por
isso mesmo, dócil a todas as disciplinas chamadas “internacionais” (…) só tem
apetites, pensa que só tem direitos e não acha que tem obrigações: é um homem
sem obrigações de nobreza.”
O “homem-massa” produz a cultura
do repúdio. E a cultura do repúdio é a cultura do esquecimento, pois
começar sempre de novo é esquecer daquilo que já se foi. Expostos a mudança
incessante, e a perda de referências, o indivíduo fica confuso, entregue aos
impulsos. Sua personalidade passa a ter a mesma constância de uma geleia, e o
seu cérebro vira uma pasta, onde nada mais se distingue. As vivências passadas
não se tornam experiências, porque não há mais aprendizado. O que se viveu deve
ser esquecido em prol do novo acontecimento. Sem a reflexão do ocorrido, o
homem não se torna maduro, pois não acumula mais experiências.
Por não possuir memória e experiência, o “homem-massa” não atribui a si um valor,
não se enxerga como uma personalidade; mas sim, como um autômato de prazeres,
fantasias, e impulsos imperiosos (encanto consigo mesmo), tornando-se parte
integrante de um coletivo, já que todos os humanos são legalmente iguais. Afirma
Ortega y Gasset: “Ingenuamente, sem ser arrogante, como a coisa mais natural
do mundo, tenderá a afirmar e qualificar
como bom tudo o que tem em si: opiniões, apetites, preferências ou gostos”.
O homem maduro, ao contrário, possui uma íntima
necessidade de apelar para uma norma superior, colocando-se a serviço dela,
exigindo mais de si do que dos outros (enquanto, o homem-massa nada exige de
si), ao não se colocar como medida da verdade. O “homem-massa” é violento em suas
intervenções, porque se julga o umbigo do mundo. A sua socialização foi efetuada pela rígida identificação com um grupo
de ideias, contentando-se com elas, sem precisar da contínua busca intelectual.
Sobre isto, Ortega y Gasset nos diz: “Não é que o vulgo pense que é
excepcional e não vulgar, mas sim que o vulgar proclama e impões o direito da
vulgaridade, ou a vulgaridade como um direito”.
O ser humano
frágil, diluído na massa, crê ser possuidor de ideias, mas não sabe formá-las,
só reproduzi-las como meio da sociabilidade grupal. Um novo tipo de homem, que
nega as certezas, mas que se mostra decidido ao impor suas opiniões, limando de
sua convivência o que não se adequa a elas. Ergue-se como representante da liberdade, mas atua de maneira
dogmática, direta, impulsiva, e – não raro – violenta. Este homem diluído
na massa é herdeiro direto do projeto moderno, mesmo que contra ele, possa se
voltar. Por isto, fala em nome da
diferença, ao mesmo tempo em que, na prática, odeia-a profundamente. O
“homem-massa” comporta-se como uma “criança mimada”, pois possui a impressão
radical de que a vida é fácil e simples, sendo furtada e limitada por poderes externos
a ela. Por isto, pensa que pode em qualquer lugar se comportar como se
estivesse em sua casa, fechando-se a qualquer instância ao impor sua opinião
vulgar.
O mundo moderno também corresponde ao advento da
banalidade, da vulgaridade, e da massificação da cultura. A banalidade é a imanência total da
humanidade em si mesma, o império da trivialidade, criando dois tipos de
prazeres: a exaltação e a monotonia. A vulgaridade
é a cópia barata, a simulação daquilo que não se é. O vulgar se instala no
lugar daquele que imita e pretende a ele equiparar-se. Nisto, mora a falta de
estilo do burguês, que ao tentar imitar as maneiras e vestimentas do nobre,
substitui a simplicidade e elegância pelo exagero, resultando num pastiche
exemplar. Sobre a massificação da
cultura, diz Ortega y Gasset: “A característica do momento é que a alma
vulgar, sabendo que é vulgar, tem a coragem de afirmar o direito da vulgaridade
e o impõe em toda parte”. As
qualidades humanas foram equiparadas (como duas mercadorias), diluindo todo destaque pessoal, e brilho
singular.
Perdido num mundo fragmentado, sem a profundidade e constância do reconhecer-se
no outro, sem identidade, e sem a experiência transcendente que lhe dá um senso
e sentido superior; o homem
(hiper)moderno mesmo desfrutando de sua liberdade, sente-se frágil diante
dos outros e do mundo, pela ausência de
laços (os consultórios de terapia estão cheios, aliás), fruto da vaidade,
da onipotência e do ensimesmamento deste sujeito. Para suprir essa ausência, ele procura uma identidade num
reconhecimento abstrato. Não raro, este “homem-massa” secularizou os antigos laços reais e profundos, substituindo-os pela ideologia
(seja como senso comum, ou como sistema de ideias), fazendo dela seu laço de
sociabilidade e identificação grupal. Um laço tão frágil como nossas
certezas sobre o mundo material. Por
isto, vivemos numa grave crise de personalidade. E os políticos, em geral,
hão de ser incapazes disto negar. Indivíduos de verdade, estamos a sua procura!
Acontece que, a conquista da sua
voz interior, de sua personalidade, do desejo cultivado de bem-aventurança para
além das fantasias de nossos impulsos, não exige apenas um profundo debruçar-se
sobre si mesmo, mas isto, num processo de encontro com o outro, rico e gerador
de experiências. Onde o “eu maduro” só se forma ao reconhecer-se em outro.
Mas, como perdemos a capacidade de transformar vivência em experiência, nos
acostumamos a viver uma vida oca, fútil, frágil, sem sentido, sem significados,
e agora, desorientada, sem comunhão. Num
mundo com pessoas tão pobres de experiência, não há senso possível de responsabilidade.
Pois, esta exige um indivíduo consciente de seus atos, e dono de sua voz
interior, que lhe acusa quando necessário.
Os homens deixaram de pensar sobre a ambivalência da vida e de ter perplexidade
diante do complexo mundo moral e de seus limites. Pelo contrário, agora todo e qualquer limite precisa ser
suplantado em nome do princípio do gozo e do dever imperativo de felicidade.
Neste mundo, pensar na substância das coisas virou um pecado.
A própria gramática política perdeu qualquer sentido e referência. Por
exemplo, a esquerda radical agora, brada contra o progresso, ao mesmo tempo em
que, age como um iluminista deliciando-se com o deslocamento contínuo de uma
aparente luta que, vai vencendo contra seus “inimigos”, no plano cultural. Na
base, é um raciocínio progressista, com o deslocamento do sentido das palavras,
pelo acúmulo de conquistas.
O debate nas redes sociais também perdeu qualquer sentido, se é que, um
dia teve um. Já não se trata mais de debater um tema espinhoso e cheio de
nuances e ambivalências, com frases-feitas, jargões de manuais vulgares, ou
coisas do gênero. Agora, o debate é feito com o puro sentimentalismo grupal, de
maneira histérica, com “memes”, e frases tautológicas que nada dizem, como:
“sabe de nada, inocente”. Já não se pode
mais distinguir o original da paródia. Uma manada de “homens-massas” aguarda
ansiosa para saber da verdade de seu grupo, a espera do grande momento: atacar
o adversário. Sem qualquer reflexão, eles buscam por bodes expiatórios que, em
tese, impediriam o esperado paraíso sob a terra. Já se foi o tempo onde não era
raro ver indivíduos pensantes, de personalidade, sobressaindo-se sobre seus
grupos, reafirmando sua posição, e demarcando seu pensamento.
Seja como for, o projeto moderno é baseado em liberdade,
mas especificamente na libertação de um homem; mas, tudo nessa vida possui
dobras. O que era pra libertar, também
domina. O homem queria se conservar melhor neste mundo, com conforto e
segurança, e agora vive o pior tipo de escravidão: a do próprio impulso. Estar submetido perenemente aos jugos de
sua vontade imediata é já viver o inferno, sem precisar de crença alguma. Ao tentar dobrar a realidade às suas
fantasias e impulsos, como a técnica faz com a montanha, o homem permanentemente revoltado enuncia suas crenças contra o mundo
liberal, mas ele nada é além desse espírito moderno indo ao seu limite. De
nada adianta a liberdade, sem a unidade da experiência.
Poder-se-ia estranhar essa identificação do homem revoltado com o ensimesmamento, já
que ele – em tese – luta pelo bem-comum, arrisca sua integridade física, abre
mão de conforto, segurança e de sua vida privada, para lutar pelos outros. Hai
de tremer diante de uma injustiça, este é o lema do homem indignado. Com
certeza, há algo de muito belo nisto. E
mais: neste impulso desesperado, certamente mora um suspiro final, diante do
sentimento de morte de uma vida autêntica, que lhe tiraram, e da qual, ele é a
máxima e ambígua expressão. Entretanto, é um tipo de beleza perigosa que, até agora, sempre terminou em cabeças cortadas, gulags, tiranias, e perseguições.
Do que se trata, então? De desmistificar a oposição: “coletivo” versus “individual”. A
revolta, a rebeldia, a transgressão, a resistência, são partes do mundo, que
sempre existiram e hão de existir. Todavia, o homem revoltado é aquele que se sente permanentemente insatisfeito
com o mundo em que vive, estando sempre indignado, querendo dobrar a própria
realidade ao seu desejo (a ideia de revolução).
O homem revoltado não
defende uma causa específica, ele
vive e se identifica com várias
causas, dando-lhes unidade, impondo-as sua pessoalidade. Assim, para ele, não
se trata de defender, por exemplo, a melhora do transporte público em sua
cidade; mas, de vivenciar essa luta,
identificar-se com ela, entregar sua paixão pessoal e seus impulsos, em nome
não da causa, mas de uma fantasia histérica, fruto de um impulso transbordante
para fugir da mediocridade da vida burguesa, tomada pelo tédio. Para
realizar essa fantasia, ele entrega seu coração. Ao mesmo tempo em que, ele
pode encontrar-se com o outro, ajuda-lo, e contribuir com alguma coisa, ele o
faz pensando em si, e em sua realização pessoal, gerando um encontro enganoso e
efêmero, que dura tanto quanto o auge de sua entrega. Isto no melhor dos casos,
em outros, ele fala em nome do “bem-estar” comum, quando, na verdade, está
tutelando o resto da sociedade. Nisto, consiste a dialética entre o individual e o coletivo, simbolizada em todas suas
tensões, na figura do homem revoltado. Entretanto, é cada vez mais difícil
distinguir nos movimentos de resistência e revolta, a figura do homem revoltado daquele que está
preocupado em resolver uma questão específica.
Acontece que, na base de formação desse homem, encontra-se
a acídia, ou seja, o cansar de si mesmo, imposto pela apatia do cotidiano do
mundo moderno. Cansados de segurança e
conforto (não por acaso, os revolucionários sempre saem das classes mais
abastadas ou médias), entediados, e sendo formados para ser a medida do mundo e
da verdade; estes indivíduos frágeis sonham com uma harmonia perdida, esplendor
que, para se realizar, só pode ser também um “sonho de domínio”, numa tentativa
de comunhão para se auto-afirmar desesperadamente.
Por isto, os regimes totalitários sempre explodiram o
cotidiano, e contra a banalidade da vida burguesa, implantaram o estado de
terror e guerra contínuos. Afirma Pascal Bruckner, sobre a contradição entre as
promessas de “fervor sublime” e a lógica de rendimento do sistema capitalista:
“A grande utopia dos anos 60, como vimos, foi decretar o
prazer perpétuo, o estado de felicidade permamente. Tratava-se de cristalizar o escoamento desordenado dos dias em um só
instante de fervor sublime, de imergir o cotidiano na efervescência. Utopia
magnífica e terrível da qual os situacionistas foram os principais
porta-bandeiras. Mas os inimigos do
tédio, repetindo-nos que “os homens vivem em estado de criatividade 24 horas
por dia” (Raoul Vaneigem) adotam a respeito do prazer uma lógica do rendimento
igual à do sistema industrial. Nos dois casos é preciso maximizar, submeter
tudo ao imperativo da rentabilidade. As volúpias, assim como a produção, não
poderiam tolerar o menor intervalo. É por esta mesma razão que os
partidários da intensidade manifestam a respeito desta existência imperfeita a
mesma animosidade que os cristãos de antigamente a respeito da condição
humana”.
A revolução é um ato contra a memória. Ela rompe com a tradição sem
superá-la, fadando-a ao fracasso e à violência. O que distingue o homem do
animal é sua capacidade de reter memória, como sabia Ortega y Gasset, “romper
a continuidade com o passado é querer começar de novo, é aspirar a descer e
plagiar o orangotango”.
Afinal, devemos criticar ou apoiar o mundo moderno? Falso dilema. Devemos
avaliar perdas e ganhos, para com isto, reconquistar nossa experiência. Da
ambivalência, não se pode fugir. Não há motivos para apologia ao mundo que
construímos, seja ele qual for; tampouco, há razões para tentar destruí-lo. Na
verdade, possuímos menos controle sobre a realidade, do que acreditamos ter no
mundo moderno, onde tudo parece ser tão perecível. Somos mais irrelevantes do que nossa vaidade quer crer.
5.
É possível amar no mundo hipermoderno? De cara, é possível amar em
qualquer época do mundo. O amor é um elemento permanente da vida humana, que se
exterioriza de diversas maneiras, mantendo ainda assim, uma unidade. A questão
é que nossa época mina as bases que possibilitam a entrega nas relações
afetivas. Sem sair da frente do espelho,
não é possível encontrar-se de verdade com o outro, e descobrir a si próprio.
As pessoas são cada vez mais senhoras do seu tempo, usufruindo da
liberdade para escolher como irá preenchê-lo. Apesar das obrigações, no estudo
ou no trabalho, estas não chegam nem de longe, perto das que já tivemos, como a
responsabilidade com uma comunidade, o respeito para com um bem maior, etc.
Ainda assim, essas pequenas responsabilidades são tidas como um peso
escorchante para muitas pessoas, que sem dar-se conta, viraram escravas da própria vontade.
Ao mesmo tempo em que, as pessoas se tornaram mais vaidosas, mimadas,
fúteis, e tratam seus sentimentos de maneira ainda mais perecível; cresce, quase
como um desespero, a ânsia pelo encontro de um grande amor. Sentindo a ausência de algo com verdadeira
profundidade, o frágil indivíduo hipermoderno lança-se ao mundo em busca disso,
fazendo do amor uma tábua de salvação, da qual a generosidade – que lhe é marca
– impede esse encontro desesperado. O fruto dessa dialética entre ausência
e ensimesmamento, é o fortalecimento das fantasias, ilusões, ou seja, das
afeições imaginárias.
Pior e mais exemplar deste mundo do que a descartabilidade dos “ficantes”
é a sucessão de paixões fluídas. Se no primeiro caso, temos a efemeridade do
corpo e do sentimento, onde – de partida – proíbe-se a entrega e o
envolvimento; no segundo caso, temos a efemeridade do amor, com paixões
relâmpagos, que tudo eram num dia, e nada se tornaram no outro. Da entrega
absoluta e imediata à “desentrega”. Em ambos os casos, desaprendemos a respeitar
o sentimento alheio; pois, tratamos nossos semelhantes como “uma porção de
comida rápida”, previamente embalada a espera do contato rápido, pronta para
nos alimentar brevemente.
Um sintoma disto é que em busca deste sentimento, “de que algo infinito
foi perdido” e que precisa ser prontamente recuperado, passamos a encarar a
inveja, a dor, as lágrimas, não como elementos constitutivos da vida humana em
sua ambivalência, mas como obstáculos que precisam ser eliminados. Mas, na
vida, tudo é feito de dores e alegrias, lágrimas e risos. Só na boca de
qualquer idiota, as frases já estão feitas: “seja feliz!”, “busco leveza e
alegria”, etc.
Longe de retomar a experiência, este homem que suspira lentamente por
algum momento de profundo, seja por paixões fluídas ou num gozo desesperado com
um desconhecido, é guiado pela falta de constância. Nem mesmo temos mais tempo
para cultivar nossos desejos. Pelo contrário, dominado pela fantasia da vez,
que no dia seguinte, já se desfaz, agimos de maneira impulsiva, esperando o
cumprimento dessa vontade, tão firme quanto à constância de uma geleia. Se o amor que queremos dar é efêmero, o
nosso ser também o é.
No centro deste homem sem responsabilidades, personalidade, constância,
encontra-se a vaidade. Mesmo quando ele pensa estar agindo com alteridade, ao
ansiar um encontro com o outro, é tomado, na verdade, por uma fantasia própria
que deseja se cumprir. Ao não ver tal promessa cumprida, ele revolta-se contra
quem isto lhe negou, e age de maneira arrogante e mimada, mostrando que de
amor: nada sabe.
A “outra face da moeda” deste homem diluído encontra-se na figura do Don
Juan pós-moderno (que obviamente, também serve as mulheres), que possui
como propósito o encontro com a humanidade, simbolizado no descarte afetivo.
Hoje, não mais você; amanhã, continuo com aquela outra; depois de amanhã,
tentarei a próxima que irei conquistar. Como se frequentasse um grande mercado afetivo, tendo em suas
fantasias e quereres uma moeda, esta triste figura fez de si e do seu afeto uma
“mercadoria universal”, onde as pessoas são trocadas com a mesma desenvoltura e
facilidade com que se faz com as coisas no mercado. Não passa de um pobre diabo
assustado, vivendo “em baixo da cama”, com medo da entrega e da realização do
amor no mundo, porque longe da certeza, estes dois elementos sublimes só nos
trazem a incerteza, a possibilidade, o horizonte da dor, e não raro, do
sofrimento e prazer mais ambíguo e conflitante que se pode ter como experiência.
E nesta falta de compromisso e respeito,
cristaliza-se a grande feiura afetiva de nossa época.
Em O Banquete de Platão, Eros aparece como um daimon, intermediário entre deuses e homens, criador de laços entre
eles. Eros é filho de Póros (o estratagema) com Penia (a penúria), e que por
ser concebido no dia de nascimento de Afrodite, ama o belo. Eros é carência que
busca plenitude. Por isto, deseja o profundo das coisas. Se fosse completo, não
a amaria, pois já a possui. Se fosse puro corpo, julgar-se-ia completo e nenhum
reencontro real poderia desejar.
Ao contrário da maleabilidade das
fantasias, o amor é durável, perene, imortal. O amor é a magia de um mundo
desencantado, é o desinteresse de um mundo de interesses, é a inutilidade no
mundo útil do cálculo racional dos adultos. Amor é um desejo cultivado, e
não uma fantasia. No entanto, será que ainda existe espaço para o amor numa vida
em que se cultua cada vez mais à coisificação do prazer? Num tempo hedonista,
dominada pelos sentidos, qual a pretensão do amar?
Acontece que, o amor não é uma relação pragmática, um encontro entre duas
pessoas, uma relação sacramentada, um namoro ou um casamento. O amor é um sentimento profundo e amplo: é
fazer da sua liberdade, o desejo de ver os outros. O amor encontra-se na solidariedade da criança
que divide o seu lanche no colégio, no olhar fraterno do velho avô com o seu
novo neto, no cuidado dos pais com seu filho pequeno e indefeso, no sexto
sentido da mãe, nos olhares apaixonados dos amantes, no encontro do professor
que ajuda seu aluno, no perdão da mãe que vai visitar o seu filho na cadeia. O
amor é desinteressado, não quer mudar o mundo. Ele é trivial, pois enxerga o outro
em sua inteireza, pois, independe de virtudes e defeitos, perdas e ganhos. Amar
é enxergar o mundo com solidariedade, e não como uma criança mimada querendo adapta-lo
aos seus impulsos e fantasias.
Neste sentido, Camus é preciso quando demonstra a incompatibilidade entre
o amor e a revolução. O homem revoltado
ama um homem que ainda não existe, nem irá existir, e que não passa de uma
projeção de suas fantasias. Ao
contrário, o amor é uma expectativa real de troca, uma entrega pelo que não se
possui, estando dessaturado de vontade, individualidade e vaidade; mas que,
espera a reciprocidade. Ou seja, um ato de fé. Porque, o amante busca no amado
a essência que não possui. Nisto, supre a falta e se torna pleno, de modo
dialético, recíproco.
Portanto, a postura de amor diante do mundo exige o reencontro com a
experiência. Só com a unidade do nosso viver, podemos diante das ambivalências
da vida, nos procurar no encontro com o outro. Recuperar a dignidade das
relações afetivas é preservá-la da
falta de sentido deste mundo efêmero, caótico, descartável. É fazer do corpo uma
fortaleza, morada viva, e não um escravo do impulso. David Foster Wallace sabia
disto quando dizia que “a liberdade verdadeira envolve atenção, consciência, disciplina, esforço e capacidade de efetivamente
se importar com os outros – no cotidiano”. Essa é uma liberdade real,
humana, generosa, amante, que merece ser vivida.