quarta-feira, 2 de abril de 2014

A Cultura do Repúdio



A Cultura do Repúdio
“When the episteme is ruined, men do not stop talking about politics; but they now must express themselves in the mode of doxa” Eric Voegelin
Quem resolve se aventurar no frontcourt ideológico das redes sociais, não passa despercebido pelo crescimento da rígida cristalização das posições políticas como forma de socialização. A fauna ideológica é ampla. A falta de honestidade intelectual também. Ao demonstrarem posições políticas rígidas, sem a devida reflexão das nuances da realidade, da complexidade das questões levantadas, e tampouco conhecimento do “estado da questão”; certos jovens procuram se inserir num grupo político, geralmente professando doutrinas. É a pressa da opinião. O palpite como auto-rótulo e identificação grupal. Mais ou menos estado na economia? O catecismo está pronto. Pois, só uma solução é possível: menos estado. Ou: mais estado. O receituário farmacêutico para um mundo melhor: basta eliminar o antagonismo, ou seja, os inimigos. Entretanto, tudo que quer dar solução ao mundo sempre termina em cortes de cabeça. Questões abstratas – ou doutrinas – sufocam os problemas concretos de seres humanos reais. Direita e esquerda: essas duas filhas da revolução.
Do que importa o conhecimento, a investigação da realidade, a busca pela verdade? Tudo isto exige trabalho, dedicação, longo prazo. A vida intelectual, em suas camadas mais genuínas, ronda em torno do amor a verdade e do desprezo pela desonestidade. Professar regras, cair em lugares-comuns, usar slogans ideológicos, sem a devida reflexão e maturação de todas as objeções relevantes que foram levantadas, é o exato oposto daquele sentimento. Serve a política (mais mesquinha), e não a vida intelectual. Pode ajudar nas conquistas materiais e imateriais pela identificação com um grupo de pares, mas embota a visão. Contra este “politicismo de tempo integral”, o intelectual deve arejar o ambiente com prudência. Essa forma rígida de socialização é comum ao homem-massa, segundo nos legou teóricos tão diferentes em alguns pontos, como Ortega y Gasset e Theodor Adorno.
O espírito da massa começa no reconhecimento do inflexível repúdio pelos que estão fora (out group). E em sentido mais estrito pode ser inserido num processo mais amplo, que podemos chamar de “cultura do repúdio”. Repudiar o existente; a vida como tal; entediar-se com as agruras do real e aspirar sempre um novo e imediato momento; cair no canto das sereias; mandar tudo às favas e começar de novo; são sentimentos comuns a essa cultura. O repúdio é sempre passional. E uma massa tomada pela emotividade sempre foi em todos os tempos, segundo a deusa-mestra da história, prato cheio para os demagogos.
A cultura do repúdio bebe na mentalidade revolucionária. Pois, esta se define como um estado de espírito, no qual um grupo objetiva remodelar a sociedade, quando não a natureza humana, por meio dos instrumentos políticos. Ao tratar a essência humana como plástica, desejando a refundação do homem e da sociedade, o espírito revolucionário repudia a realidade.
O tempo acelerou-se, o paraíso deslocou-se para terra (pois, as utopias modernas nada mais oferecem do que o paraíso na terra), e agora, a felicidade nos é imposta: seja feliz, sem neuras. Eis, a nova “moralidade” dos nossos tempos: faça aquilo que queira. Em outras palavras, volte a ser criança. A vertigem que nos cerca (nas ruas ou nas redes sociais) recolhe a reflexão, nos tira o tempo para ativar a memória. Transforma-nos em indivíduos artificiais numa massa amorfa. O concreto é suspenso pelo abstrato. A caricatura reina: da verdade, da maturidade, do homem.
A cultura do repúdio é a cultura do esquecimento, pois começar sempre de novo é esquecer daquilo que já se foi. As vivências passadas não se tornam experiências, porque não há mais aprendizado. O que se viveu deve ser esquecido em prol do novo acontecimento. Sem a reflexão do ocorrido, o homem não se torna maduro, pois não acumula mais experiências.
Ao recordar, ativamos a memória e o nosso passado como experiência. Memória dos pecados cometidos. Desejo de reconciliação, tomar a sua vida para si: saber o que se está fazendo. O indivíduo maduro é estável perante os limites da vida, não se deixando levar pelos torvelinhos do sempre novo. Ele balanceia seus impulsos mais imediatos e dissonantes com a racionalidade adquirida com a experiência, equilibrando tensões inerentes ao sujeito. Faltam homens maduros, abundam crianças palpiteiras.
Neste sentido, Ortega y Gasset lembra-nos que a memória é o que diferencia o homem do orangotango. Pois este possui uma memória limitada, tendo dificuldade reconhecer o que se passou no dia anterior, e sendo obrigado a trabalhar com um material mínimo de experiências. Ao não transformar vivência em experiência, o homem – num estranho progresso – vira-se para o estado primitivo do orangotango. Assim, a cultura do repúdio é o rebaixamento do humano ao orangotango. Contra isto, o homem deve ter direito à continuidade, apropriando-se do passado ao aprender com os erros, garantido numa razão histórica que ao reconhecer os erros, aprende com a incompletude e infinitude humana

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