segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Theodore Dalrymple: Sobre a legalização das drogas

Tradução de Anderson Calé

5 de dezembro de 2012. Original: http://www.city-journal.org/2012/eon1205td.html

Discutir com os libertários sobre a legalização das drogas, como fiz recentemente, pode ser uma experiência frustrante. Isso, em parte, porque eles raramente dizem exatamente o que querem dizer com "legalização". Será que significa para eles um mercado controlado que pouco representaria de um recuo na regulação e interferência estatal, ou algo não controlado, em que todos nós poderíamos nos dispor a comprar metanfetamina ou crack em nossas lojas locais?
                
Há um problema mais profundo, no entanto: sua concepção do que é a vida numa sociedade civilizada. Eles parecem pensar nas pessoas como partículas egoístas que ocasionalmente colidem umas com as outras, ao invés de serem necessária e essencialmente sociais. Sem dúvida há algumas partículas egoístas entre nós, mas elas representam apenas uma minúscula proporção do todo. Em matéria de drogas, libertários argumentam que não é um negócio do Estado dizer aos cidadãos o que tomar ou não tomar, e que fazê-lo é, portanto, um cerceamento opressivo da liberdade. As leis sobre drogas, ele insistem, não funcionam na prática, porque muitas pessoas quebram-na - com ou sem impunidade, conforme cada caso.
                
Deixe-nos esboçar uma analogia com as leis de limite à velocidade. Elas indubitavelmente cerceiam nossa liberdade; elas são indubitavelmente aplicadas desigualmente; e da mesma forma é certo dizer que elas não funcionam, no sentido de que dificilmente haverá um só motorista no mundo que não as tenha quebrado intencionalmente. De fato, é provável que a maioria dos motoristas quebrem as regras de velocidade toda vez que dirigem um carro.  Mas isso quer dizer que o limite de velocidade não funciona? Não. Alguém suporia que se não houvesse limites à velocidade, as pessoas não dirigiriam rápido? Você só precisa dirigir por uma rodovia alemã, onde não há limites para velocidade, para ter sua reposta.
                
Agora, um libertário poderia dizer que cidadãos responsáveis poderiam ser capazes de determinar por si mesmos em qual velocidade dirigiriam. Isso não requer muita inteligencia ou discernimento para ser feito. Também deve ser lembrando, pela analogia com a frequente inofensividade das drogas, que a maioria dos excessos de velocidade não terminam em acidente fatal. Portanto, nem todo excesso de velocidade é um abuso de velocidade; e se algumas pessoas que excedem a velocidade são fatais aos outros, elas podem sofrer as consequências financeiras ou de outro tipo. A perspectiva de que essas consequências podem  ser o suficiente para fazê-las ajustarem sua velocidade a uma que seja sensata e segura, e que, como um adulto, seja o melhor juiz da velocidade em que é capaz de dirigir com segurança. Se um homem chega são e salvo em casa, ele, ipso facto, dirigiu numa velocidade sensata.
                
Aí de mim!, essa é uma estranha antropologia filosófica. Pessoas não são - eu não sou - assim. Posso perceber que outras pessoas não devem dirigir acima de certa velocidade, mas posso não perceber que eu deveria fazê-lo. Eles, é claro, têm uma visão de espelho: pensam que estão seguros e que eu é que sou o perigoso. Mas, embora nos consideremos seguros, o fato é que o excesso de velocidade nos deixa mais propensos a sofrer um acidente ou a matar alguém.
                
Viver numa sociedade civilizada significa aceitar leis que uma pessoa não fez para si mesma, e que em qualquer dada situação pode parecer desnecessária; mas não há quem tenha o direito de se queixar se punido por quebrá-las. Aceito a lei como necessária mesmo se eu a quebrar. Uma pessoa não é por si mesmo o árbitro de tudo. Na verdade, em algumas circunstâncias isso é o correto a ser feito para prevenir potenciais injúrias a terceiros, tais como motoristas irresponsáveis, ou pegar produtores de drogas, ao invés de esperar para que elas ocorram. É uma questão de discernimento, não de princípio, quando essas circunstâncias existem - e na minha opinião, a apreensão de metanfetamina se encaixa bem nesse lado da prevenção justificável.

É claro, restrições sobre a liberdade podem se tornar onerosas, e regular mesquinharias pode talhar a liberdade por completo. Mas as liberdades não foram todas criadas iguais, existe uma hierarquia entra elas, e a restrição da liberdade de se intoxicar ou dirigir pela Fifth Avenue a 100 milhas por hora não pode ser comparada com a restrição sobre a liberdade de dizer o que você pensa. Portanto, limitações ao discurso são um ataque muito mais sério à liberdade do que as leis contra as drogas.




domingo, 22 de novembro de 2015

Roger Scruton: Onde Marx estava certo e Thatcher errada

Tradução de Anderson Calé

Texto de 1998. Original: http://www.independent.co.uk/voices/where-marx-was-right-and-thatcher-wrong-1172150.html

O governo Trabalhista começou com a promessa de acabar com o  "boom-bust" econômico. Agora, está enfrentando a expectativa de uma séria recessão. Então, onde Partido Trabalhista se situa a respeito do capitalismo? Polegares para cima, polegares para baixo? Quando Margaret Thatcher estava em serviço, os polegares certamente estavam para baixo. Indagado a respeito da causa de qualquer mal social - crime, drogas, o colapso das cidades do interior - políticos Trabalhistas poderiam apontar para a "cultura da ganância" com a qual tachavam Thatcher. Eles associaram essa cultura com os grandes negócios, com a Cidade, com a livre empresa, a livre troca e o livre mercado. É surpreendente, eles nos perguntavam, que a sociedade britânica esteja desmoronando, que a lealdade, a decência, a compaixão e a vida do espírito esteja desaparecendo, quando o governo mede tudo em termos monetários?  É surpreendente que nosso país aparente ser mais e mais uma nação sem alma, quando seus líderes são aconselhados por empresários, concedem honras aos empresários, e estejam ansiosos para se tornarem empresários quando finalmente descartados - ou regurgitados?
                
É fácil simpatizar com essas acusações; menos fácil é descrever a alternativa. A União Soviética curou a maior parte da ilusão socialista  das pessoas. O grande experimento socialista foi um desastre, econômica e socialmente. Crime e vandalismo podem ter sido menos aparente na antiga União Soviética, mas só porque eram monopolizados pelo Partido. Desde então, como tudo o mais, eles foram privatizados - em geral para cada pessoa que tinha o controle sobre eles no passado. Agora nós vemos a realidade moral que décadas de terror suprimiram: uma sociedade em que o cálculo frio prevalece por sobre  toda a forma de dever social; e nós também pudemos ver - nas últimas semanas da crise econômica - as consequências da privatização quando o senso de dever social é destruído.
                
Assim, o fracasso do socialismo não deixou o capitalismo de fora. Há algo de errado com uma sociedade que é governada inteiramente pelo imperativo dos negócios, que não reconhece qualquer restrição à troca além do mercado, e que torna o negócio e o empresa seu principal valor. Quando Marx e Engels compuseram o Manifesto Comunista eles não condenaram o capitalismo por seu poder econômico. Condenaram-no pelo seu custo humano. "Ele não deixa outro nexo entre o homem e o homem", eles escreveram, "que não seja o 'pagamento à vista', e isso afogou a maior parte do celeste fervor religioso... nas águas gélidas do cálculo egoísta. Fez da dignidade pessoal um simples valor de troca, e em lugar de inúmeros e indefensáveis liberdades privilegiadas, estabeleceu essa única, inescrupulosa liberdade - Livre Comércio." Exagerado, com certeza. Mas não destituído de verdade. Mesmo se recusarmos a alternativa de Marx como ingênua em sua finalidade e perversa em seu meio, nós não podemos recusar a perspicácia moral da qual ela deriva - nomeadamente, que o livre mercado deixado por si mesmo é tanto uma força criativa como destrutiva.
                
Isso, em resumo, é o que o Partido Trabalhista e seus gurus repetiram nos anos de Thatcher e, mais em surdina, durante o interregno cinzento de John Major. Mas isso não é o que eles estão falando agora. Sob Tony Blair, o empreendedorismo ainda está na condução. O Primeiro Ministro nomeia magnatas dos negócios para a Casa dos Lordes com o mesmo  entusiamos desmedido de Margaret Thatcher: ele até fez do Lord Sainsbury um sub-ministro no Departamento de Comércio e Indústria - exatamente o departamento em que, se trabalhismo nada significa, deveria ser controlados por pessoas como Lord Sainsbury. Olhe para a política Trabalhista em qualquer das áreas em que os gigantes capitalistas tem um interesse - Europa, EMU, alianças e monopólios, meio ambiente e agronegócio - e você verá promessas eleitorais e convicções morais se desfazendo antes dos imperativos comerciais. O argumento que foi aceito, como fora aceito sob Thatcher, de que a prosperidade significa crescimento, que crescimento significa globalização, e que globalização significa abolição das restrições locais. Proíba-nos de nos tornarmos grandes na Grã-Bretanha, dizem os magnatas, e nós iremos para outro lugar, levando nosso capital, nossos impostos, nossos empregos e nossa propriedade conosco.
                
Em qualquer governo de emergência rapidamente se percebe a estupidez da globalização. Encontrando a nós mesmo em guerra com a Alemanha, entendemos - tarde demais - os méritos da manufatura local  e da agricultura auto-suficiente. Porém, políticas modernas são conduzidas inteiramente como se emergências fossem uma coisa do passado. O processo político não é apenas um dos "spin-doctoring"; ele é um exercício de amnésia coletiva. Ainda assim, a crise asiática deve ter acordado o Partido Trabalhista para o perigo: por causa da internacionalização de nossa economia, amarramo-nos a catástrofes que não podemos evitar.
                
Mas há um motivo mais importante para voltar à velha crítica socialista. Lealdade, dever, honestidade: são essas as coisas que não podem ser compradas. Em um mercado não reprimido, portanto, elas são expulsas por coisas que podem ser compradas. Suborno, corrupção e baixeza tomam o lugar da responsabilidade. O mercado depende da honestidade, mas deixado por si mesmo, destrói a honestidade. Esse é o por que de o mercado obter sucesso apenas quando não deixado por si mesmo - apenas  quando sujeito a restrições morais e religiosas que preservem a reserva de virtude humana.
                
Não é apenas a vida pública que está aberta a corrupção pelo mercado; a vida privada também está em risco. Isso costumava não precisar ser dito: não só o Trabalhismo Antigo, mas o partido Tory, também, costumavam desacreditar a comercialização das coisas sagradas. Indecência, obscenidade e blasfêmia eram imediatamente reconhecidas, e imediatamente condenadas. Era comum reconhecer que coisas com um algum valor não deveriam ser degradadas a algo com um preço. Sexo, por exemplo, não poderia ser exibido como um objeto de troca entre estranhos. Nosso censor-chefe aposentado, James Ferman, agora argumenta que, se permitida algumas formas de ponografia, você pode se armar mais efetivamente contra outras, especificamente essas que envolvem violência ou crianças. Tal é a inocência da mente liberal, que imagina que você pode permitir a livre transação de bens e assim manter as pessoas fora do mercado. Todo mercado, uma vez permitido, trará novos compradores e vendedores. Pedofilia não pode ser combatido pela permissão de pornografia, já que o pornô cria o estado de espírito que não vê nada de errado com a pedofilia.
                
O Sr. Blair descreve-se como um Socialista Cristão: ele não é tal coisa. Como a baronesa Thatcher, ele é um liberal no século XIX. Ele pode nunca ter dito "você não pode restringir o mercado", mas ele age como se isso fosse verdade. Se ele pusesse seus princípios religiosos na prática política, ele poderia ser um Cristão capitalista. Já que o capitalismo é apenas outro nome para o mercado, e o mercado está aqui para ficar. Naturalmente, nós podemos dizer do mercado aquilo que Churchill  disse da democracia: um sistema muito ruim, mas as alternativas são piores. Assim como a democracia precisa de leis e instituições para proteger as coisas que não estão para serem votadas, do mesmo modo o mercado precisa de escrúpulos morais e religiosos para conter as coisas que estão aí para não serem negociadas.

                 
A religião salva da tirania do preço todas essas coisas que não têm um valor comercial: amor, casamento e a família; lealdade, honestidade e comedimento. Se essas coisas não são salvas, então a sociedade se desintegrará, e o mercado se desintegrará com ela. Essa é a mensagem que nós deveríamos estar ouvindo de nossos líderes: que há coisas que são muito importantes para serem compradas ou vendidas. E é essa a mensagem que o Papa não se cansa de repetir. Mas essa é uma mensagem que nunca terá destaque enquanto os negócios estiverem na condução.

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Pequeno Glossário de Eric Voegelin para Entender o Debate Público

Em pleno transcorrer de uma campanha eleitoral, não há de passar por despercebido certos cacoetes mentais que, por sua vez, expressam as iniquidades da classe intelectual deste país. O debate público é permeado por uma verborragia infernal, por discursos ausentes de realidade, propostas genéricas, e por uma crença messiânica na simples renovação, ou do seu inverso, na simples continuidade. Alguns termos cruciais da filosofia de Eric Voegelin nos pode dar luz sobre a raiz de tais problemas. Vejamos alguns deles, a partir do livro de Michael Federici: "A Restauração da Ordem".

FEDERICI, Michael P. A Restauração da Ordem. São Paulo: É Realizações, 2011. 1ª Edição. (p. 189-211).

Apocalipse Metastático - A transformação da realidade através de um ato de fé. Voegelin associa a este conceito a ideia de mágica. 

Consciência de Época - Conceito que Voegelin emprega para descrever a ideia de que está surgindo uma época nova e final que está terminando uma época antiga. Ele atribui ao Iluminismo uma consciência de época que está relacionada a Joaquim de Flora no século XIII. Flavio Biondo é outro exemplo de pensador que tem consciência de época porque ele dividiu a história em antiga, medieval e moderna. O movimento, entretanto, não alcança o ponto de significância política e revolução social senão até o século XVIII. A consequência inclui o "significado perdido da existência cristã" e a ascensão dos movimentos políticos de massa.

Cosmion - Termo de Voegelin para o "pequeno mundo de ordem" criado por uma sociedade através de seus símbolos auto-interpretativos e experiências correspondentes. O cosmion é defendido e racionalizado de uma maneira que produz registros históricos que podem ser analisados para desvelar a história das ideias. O cosmion é uma reflexão de uma ordem mais ampla e mais alta que implica a necessidade de subordinar a vontade humana à realidade transcendente. Regimes totalitários, por reconhecerem apenas a realidade intramundana, substituem o cosmion pelo cosmos.

Deformação - A destruição da alma pelo fechamento existencial ou pela corrupção ideológica. Equivalente a desculturação. A deformação pode ocorrer quando a verdade diferenciada é deformada em dogmas ou doutrinas ideológicas. Por exemplo, a noção de Marx de "emancipação" é uma deformação da ideia do Evangelho de metanoia (conversão espiritual verdadeira).

Desespiritualização - O relegar à vida privada assuntos espirituais e símbolos. À desespiritualização segue-se a respiritualização: o cristianismo é substituído por ideologias modernas que contém uma semelhança com o cristianismo, mas são faltas de sua substância espiritual.

Ecúmena - A tentativa de criar uma comunidade universal da humanidade, seja num sentido espiritual, seja num sentido imperial.

Escatologia - Especulação acerca do destino final e último do homem. Há pathos escatológico em Marx porque ele afirma ter descoberto o destino do homem como a perfeição da natureza na história. Intimamente relacionado ao milenarismo. Ideologias gnósticas e utópicas como o comunismo e o nacional-socialismo acreditam que é possível imanentizar o eschaton (trazer o céu a terra).

Fé Metastática - Fés metastáticas tentam transformar radicalmente o ser, a estrutura da realidade, a si mesmas. Essas crenças utópica são escapistas, pois sugerem que os seres humanos podem sair do entremeio e criar sociedades que encontram uma maneira de eliminar a tensão da existência.

Fechamento Narcisista - Termo que Voegelin emprega para descrever a condição espiritual de uma alma fechada que se revolta contra o fundamento transcendente do ser, ao colocar o homem no lugar do fundamento divino.

Fragmentação - A tendência comum de ideólogos de tomar uma parte da realidade, reduzi-la a uma doutrina ou proposição, e considerá-la o todo da realidade.

Gnosticismo - Ideologia que afirma o conhecimento absoluto da realidade. Segundo Voegelin, caracteriza o mundo moderno. É engendrada pela insatisfação com a estrutura da existência como ela é e pela crença de que uma nova ordem pode ser criada pela execução de um plano revolucionário de ação, baseado na gnose. A nova ordem representa uma transformação da natureza humana e da própria estrutura de existência.

Ideologias Secundárias - Ideologias como conservadorismo ou tradicionalismo que são criadas para preservar a ordem existente de movimentos radicais como jacobinismo ou marxismo.

Libido Dominandi - A vontade de poder. Uma característica definidora dos gnósticos, que, afinal, revelam que por trás de suas proposições ideológicas jaz a luxúria pelo poder e domínio.

Paradoxo da Modernidade - Progresso e declínio concomitantes. O progresso é na área da ciência e da tecnologia, que levou a níveis notáveis de conforto material, educação e saúde. No entanto, esse progresso se faz à custa do declínio espiritual. Guerras destrutivas, materialismo ideologicamente motivado e alienação engendraram um corpo de literatura sobre o declínio do Ocidente.

Páthos - A paixão e a comoção que estão associadas com a vida humana e a ansiedade do entremeio. Doutrinas ideológicas criam um clima cultural que compele o filósofo a apelar ao páthos como maneira de penetrar a verdade da existência que todos os seres humanos compartilham na experiência.

Princípio Antropológico de Platão - A interpretação da ordem social e existencial. Esta ideia está presente na República, obra na qual Platão faz conexões entre a ordem da alma e a ordem da pólis. Se a pólis é o homem (a alma) escritas com letras maiúsculas, então as ordens social e política dependem dos líderes que sintonizaram sua alma com o fundamento. A degeneração do regime é, afinal, uma degeneração do caráter moral na classe reinante. Por implicação, instituições sociais e políticas são incapazes de manter uma ordem justa sem líderes de caráter moral sadio.

Religiosidade Intramundana - Uma nova religião que emerge do iluminismo. O homem não é ordenado de cima pela graça eterna de Deus, mas de baixo, pelo interesse próprio e pelo cálculo utilitário.


terça-feira, 30 de setembro de 2014

Notas sobre mais uma eleição que não foi.

I

Desde a redemocratização, apenas na eleição de 1989 tivemos dissenso na substância dos problemas levantados, ainda que, de maneira muito superficial. De um lado, Lula, Brizola, Roberto Freire e Mario Covas defendiam propostas diferentes num mesmo campo da política; e, do outro lado, Ronaldo Caiado, Afif Domingos, Aureliano Chaves, Fernando Collor, Paulo Maluf.  Após o fracasso do governo Collor, e a passagem da social-democracia ao campo do liberalismo social num contexto de fracasso e desmonte do estado de bem-estar social, nossas eleições ficaram marcadas por uma polarização de pouca substância entre tucanos e petistas.

Neste contexto, as questiúnculas tornaram-se centrais. E a disputa pelo poder (inerente a política) predominou sobre as discordâncias. O candidato petista criticava as privatizações, o seu adversário não discordava (apenas contextualizava a missão do seu partido nos anos 90). O candidato petista criticava o "conservadorismo" e pedia um estado transformador da sociedade, o seu adversário não discordava tanto assim. Em 2010, estavam presentes nos debates: a candidata do governo petista (Dilma Rousseff), dois ex-petistas (Marina Silva e Plínio de Arruda), e um tucano (José Serra) reconhecido como o principal defensor da tese de mais estado na economia dentro do seu partido. Todo dissenso produzido no processo eleitoral veio da sociedade e dos seus valores hegemônicos. Mas, a candidatura de oposição ao PT pouco conseguiu captar disto por concordar com as teses do seu adversário neste campo.

Em 2014, o processo eleitoral é ainda mais oco. A sociedade parece cansada e incapaz de impor dissensos que há habitam para as candidaturas. Por sua vez, os candidatos nanicos presentes nos debates estereotipam posições, criando um "discurso enlatado" para nichos eleitorais, em busca de qualquer deputado a mais no Congresso.

Sem um dissenso bem articulado entre os principais candidatos, o processo eleitoral de escolha do seu representante perde um pouco da sua razão de ser. É bom lembrar que o consenso não deve ser criado por políticos ou partidos em busca do voto, mas pela sociedade civil quando elege uma representação tão diversa quanto ela. Após a eleição, os representantes eleitos devem buscar um consenso mínimo que faça as instituições caminharem dentro da ordem. Na eleição, partidos e políticos devem oferecer dissenso, diferenças na maneira de enxergar o mundo, num embate civilizado de propostas, respeitando a ordem democrática.

II

TODOS SÃO IGUAIS, MAS UNS SÃO MAIS IGUAIS DO QUE OS OUTROS. As falas de Levy Fidelix dirigidas aos homossexuais foram ofensivas, preconceituosas e intolerantes. Dito isto, não me causa espanto a reação de certos grupos que estão mais preocupados em cercear a liberdade de expressão, criando um estado de paranoia social e de novilíngua, do que com o efetivo convencimento. Estufam o peito para falar em democracia, diálogo, Hannah Arendt, mas são incapazes de perceber a expulsão do objeto no debate público: só encontramos sujeitos. Esta ânsia por aprovação ou repulsa imediata significa o reflexo animalizante em se identificar com um grupo em detrimento a outro. Assim, a histeria se transformou num sinal de reconhecimento grupal. E só neste estado de completa imbecilidade podemos naturalizar a intolerância de outros candidatos, pois estas são admitidas pelo establishment intelectual do país e pela militância. É a intolerância dos tolerantes.

Pois bem, Luciana Genro, essa fina flor da imbecilidade humana, pode desfilar preconceitos grosseiros contra empresários, banqueiros, agricultores e evangélicos. E os militantes do seu partido podem queimar bandeiras de Israel e dos Estados Unidos, cuspir na cara dos milicos, desrespeitar os religiosos em seus templos. Mas isto não é intolerância. Todos são iguais, mas uns são mais iguais do que os outros.

José Maria, Rui Costa Pimenta e Mauro Iasi podem defender abertamente a violência revolucionária, a expropriação de todos os bens da "burguesia", o governo do proletariado em armas. Mas isto não é intolerância. Todos são iguais, mas uns são mais iguais do que os outros.

O engraçadinho e autêntico Eduardo Jorge pode falar do feto como um parasita, onde sua única função é levar ao óbito mulheres que querem matar seu próprio filho. E pode, inclusive, discursar como 'salvador do mundo', com todos os delírios inerentes ao catastrofismo ecológico de hoje. Mas isto não é intolerância. Todos são iguais, mas uns são mais iguais do que os outros.

Neste espetáculo mambembe, não espanta a reação histérica dos que são tão intolerantes quanto Levy (só que com outras identidades), naquele ar de indignação fingida, que apenas revela a preocupação em falar a linguagem do seu grupo. É a boa e velho ideologia: diluída, volátil, atmosférica.

No entanto, defendo o direito de todos eles se expressarem. Não é calando os vulgares que iremos ter mais democracia. Deles só nos livramos quando podem abertamente se expressar.

III

Quando as pessoas compreenderem que socialismo NÃO é o contrário de capitalismo, mas sim, de democracia; tornando o capitalismo infinitamente mais destrutivo do que na democracia liberal; vai dá pra conversar sobre a situação da América Latina.

O Socialismo é um esquema de poder, e não um sistema de produção, aonde poder político e poder econômico tornam-se coincidentes, e o Estado tende a engolir a sociedade civil; por isto, os agentes econômicos (empresas, famílias etc) são controladas, nem sempre de maneira direta. Não há lógica revolucionária que não aponte para a concentração de poder.

IV

Marina não sofreu metade da artilharia petista contra o Serra em 2010, e já caiu 10% em duas semanas e meia. Para piorar, ela não pode reagir aos ataques, pois não fez um acerto de contas com o seu passado, e continua a comungar boa parte das teses históricas de seu antigo partido. A tal ponto que, em entrevista ao Roda Viva em 2013, disse que a Rede deve cumprir a função que o PT teve nos anos 70 e 80. Criticar o PT e Lula na raiz seria como criticar a si mesma. E sem fazer isto, ganhar da Dilma será impossível.

Causa-me espanto que com esta curva descendente e com dificuldades inerentes a candidatura (não terá o voto do agronegócio, um partido ocupando o lugar mediador das instituições políticas, democracia de alta intensidade com grupos de pressões, etc.) alguém ainda ache a sua candidatura a mais competitiva para bater Dilma. Não, não é. Ela já perdeu essa eleição.

V

Leio que Marina Silva vai governar com os melhores. E quem é o melhor do PT? Eduardo Suplicy. Aquele senador paulista que labutou arduamente para que o presidente Lula concedesse asilo político a Cesare Battisti, comunista condenado pela justiça italiana por dois assassinatos e participação noutros dois. Até a extrema esquerda italiana ficou estupefata com a decisão do ex-presidente. Mas, temos que ouvir e ler que o PT é moderado por fazer alianças (como qualquer stalinista da vida, que fazia acordos até com a democracia-cristã) ou por ter criado um capitalismo de estado que torna a burguesia nacional dependente, e escorchada por um imenso esquema de propinas e favores (como qualquer socialismo da vida). E para não dizer que não falei das flores: Marina não quer participar de um partido, ganhar uma eleição com ideias específicas, mas encarnar a própria mediação política, que deveria ser impessoal e institucional. Ela tem a monstruosa ideia de fazer do seu partido: o mediador dos conflitos. Marina saiu do PT, mas o PT não saiu dela. Ou, talvez, o Brasil tenha virado o PT sem perceber. Ecos de insatisfação tomam corpo, mas são irrelevantes se não atingem o centro do poder nacional: o governo federal. Na Venezuela, oposição também controla vários estados.

VI
 
Vem aí mais uma eleição, e lá vamos nós mais uma vez votar numa urna eletrônica, sem qualquer registro físico do voto. Não sei se há, haverá ou já houve fraude eleitoral, pelo simples fato de que é impossível saber. Só no Brasil e na Índia se usa urna eletrônica de primeira geração (sem voto impresso e sem auditoria do resultado). Na Alemanha, nos Estados Unidos, e na Holanda, este sistema foi proibido e declarado inconstitucional. É incompreensível a teimosia do TSE em não adotar a urna eletrônica de segunda ou terceira geração.

VII

Todos esses jornalistas que hoje não passam de símbolos da venalidade petista (Paulo Moreira Leite, Tereza Cruvinel, Franklin Martins, Paulo Henrique Amorim, Luís Nassif, Kennedy Alencar, Luis Carlos Azenha) já ocuparam postos fundamentais nas principais empresas de jornalismo. Diz algo a respeito do que se tornou o chamado "debate público" numa campanha eleitoral.

VIII

Sou nordestino, e não me sinto ofendido com nenhuma piadinha. Não dói. E se quisesse responder tudo que diria era um 'vai se foder' ou outra piadinha, e estaria tudo certo. Nada de processo, sem vitimização. Qualquer xingamento, preconceito bocó, ou coisa do gênero é brincadeira de criança perto da imoralidade de um linchamento público. Há mais honra e dignidade em qualquer guerra do que nesta invenção moderna: a união de todas as pessoas para bater em uma única, tendo como disfarce o bom mocismo.

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Ron Paul no Brasil: a direita que insiste em não crescer

Pelo que lemos na arena das arengas ideológicas, o grande sonho do brasileiro deve ser se tornar adulto. Só isto explica esta tara tupiniquim de falar em nome da liberdade (à direita e à esquerda) e de colocar a vontade acima da verdade, revelando um desejo pueril (típico da adolescência) em se autoafirmar constantemente perante a ordem e os limites da realidade.

Para reconquistar espaço no debate cultural, parte da nova direita brasileira promove e traz ao país, Ron Paul, que como qualquer ideólogo fala naquele tom celestial de guru intelectual. Ele é o dono da receita de bolo que nos libertará: o libertarianismo. Sugestivo. Ele não percebe que ao prescrever uma receita de sociedade (baseada nas liberdades civis como ideia absoluta), bastando que a sigamos para conquistar a prosperidade, já está limitando a liberdade alheia, mesmo de maneira indireta. Pois, uma escolha sempre representa certas perdas.

A palavra sociedade vem do latim societas, uma espécie de associação entre as pessoas para melhor convívio, compartilhando valores, costumes, hábitos. Em síntese, significa um grupo de pessoas vivendo juntas numa comunidade racionalmente organizada. Logo, a base da sociedade é a limitação da liberdade individual em prol de um bem comum, a vida em conjunto. E a tirania é exatamente a liberdade ilimitada (dentro das possibilidades da estrutura da realidade) de um indivíduo que oprime todas as outras pessoas na consecução dos seus desejos.

Então, se você coloca como princípio organizacional da sociedade, o princípio absoluto das liberdades civis individuais, há na realidade uma contradição patente. De tal modo que, será impossível manter esta sociedade, e a liberdade se tornará o inverso de si mesmo, a tirania. Portanto, o princípio da liberdade não pode ser o elemento formador da sociedade, e não deve estar acima da coesão social. Na esfera civil, ela tem de ser limitada pelo princípio da justiça (dar a cada um o que é seu). Devendo haver um equilíbrio tensional entre as liberdades civis, de modo que esta não ameace a própria ordem e a paz social.

Deste modo, falar em nome da liberdade é uma verborragia inútil. Pois, a liberdade é um conceito limitado e não um princípio geral (como o princípio da incerteza de Heinsenberg), e está sendo sempre aplicada de maneira relativa e relacional. Por não estar excluída das ambivalências da vida, torna-se uma norma de aplicação prática, limitada por sua própria natureza. Se eu dou ao indivíduo a possibilidade de se autodestruir e dou a outros indivíduos a possibilidade disto incentivar (como na legalização das drogas antissociais), esta liberdade pode se voltar contra as bases da organização social, correndo-a por dentro, e por conseguinte, destruindo a liberdade de todos os outros. Se a liberdade não é limitada num equilíbrio tensional, a vida de toda sociedade está em perigo. Um atentado terrorista, por exemplo, pode deixar de ser evitado se os investigadores não puderem utilizar certos métodos de urgência.

Compreendendo estes aspectos, fica mais fácil entender por que a argumentação de Ron Paul, o republicano mais querido pelos democratas, não está longe de toda pauta cultural do esquerdismo mundial. Como a esquerda pós-68, Ron Paul se esquece que não se pode alcançar um estado ideal, sem limitações das possibilidades da vontade individual, mesmo quando esta aparentemente não me diga respeito. Como ela, Paul quer transformar os indivíduos em seres hedonistas, individualistas, profundamente egoístas, sendo tiraninhos de pequenos reinos individuais, ameaçando a sociedade inteira, pois o Estado não pode interferir, nem limitar certas liberdades civis.

Como um ideólogo doutrinador qualquer, o sr. Ron Paul está preocupado em dizer como a sociedade deveria ser. No entanto, o sr. Ron Paul é incapaz de olhar para as perdas e as consequências da aplicação absoluta de seu conjunto de ideias gerais. É incapaz de fazer um exame sistêmico e estrutural da realidade material e histórica sob a qual está assentado e terá de lidar. O sr. Ron Paul, ao modo brasileiro, não analisa questões específicas, as suas nuances, as curvas do fazer histórico; mas discute doutrinas, ideias gerais, reafirmando as suas num esquema hipotético, tão fácil de derrubar quanto a de qualquer ideologia. Em especial, um ponto me chama a atenção: o seu isolacionismo em termos de política externa.

Se os neocons são adolescentes zombeteiros que querem consertar o mundo e universalizar a democracia ocidental por decreto da força, como se a realidade fosse facilmente moldável; os isolacionistas são adolescentes assustados com o mundo fora de si, achando que podem brincar alegremente, desfrutando de toda liberdade em suas terras, enquanto o pau quebra no mundo inteiro, como isto não fosse um dia lhe atingir ou não lhe dissesse respeito.

No complexo jogo de xadrez geopolítico de hoje, Putin e a aliança eurasiana  ameaçam cada vez mais o raio de influência das democracias liberais do Ocidente, inclusive, em seu próprio habitat. No Oriente Médio, a confusão impera, e o grupo jihadista, ISIS, domina um território portentoso e pode avançar sobre o dos curdos, abundante de petróleo. Qual a consequência para o mundo se o grupo terrorista ISIS obter grande poder político e financeiro? E mais: o mundo ficará passivo perante o genocídio de cristãos, curdos, yazidis, e outras minorias? Na Europa, sob as ruínas que restam da sociedade corroída, discute-se sobre os males causados pelo multiculturalismo. João Pereira Coutinho, na Folha, nos expõe quase que semanalmente tais problemas. Grupos muçulmanos falam abertamente em islamizar o velho continente. E como isto tudo já não bastasse, avisa o prof. Gunther Rudzit que o mundo multipolar pode ser ainda mais perigoso do que o bipolar.

No entanto, o sr. Ron Paul afirma que tudo ficará bem para o seu país (dane-se o mundo), se os americanos reclusarem-se em sua casa (como se não houvesse problemas com o multiculturalismo). Eis a mensagem do guru: não se preocupem em defender o seu território, nem evite genocídios nos países dos outros, que tudo dará certo. A quem interessa deixar os Estados Unidos em posição de total fraqueza, exposto a ação de seus inimigos? Propor a paz universal nas chaves isolacionistas já soa ridículo perante o conhecimento de que a base de todas as guerras feitas pela humanidade foram por território; que dirá então, num mundo globalizado, complexo, interligado, de diminuta da soberania nacional, não passando de exibicionice de sua própria loucura doutrinal.

Ao trazer Ron Paul, o libertário que os esquerdistas adoram, a nova direita - monstruosamente inculta a respeito das teses de seus adversários - pretende advogar a "liberdade sem concessão" na luta cultural contra a esquerda? Agindo assim, provam merecer o riso dos seus adversários, ao mesmo tempo em que, colocam mais água nos seus moinhos de vento, nos trazendo, tal como a esquerda, mais uma receita de mundo melhor. De minha parte, sou tão inimigo da esquerda radical quanto da direita que ama Ron Paul.

sábado, 19 de julho de 2014

Na Dialética Mundana, os Anjos Traziam Sopros do Paraíso e dos Desgraçados Fez-se a Redenção: arrependimento e perdão em Magnólia.



“Ao renegar a partida, infestarei de rãs todo seu território”.
Êxodo 8:2
I

“Deixai, ó vós que entrais, toda a esperança!” Nada definiria melhor o inverso de Magnólia do que a porta de entrada do inferno de Dante. O filme Magnólia, ao contrário, trata dos desgraçados em terra. Pois, é na desgraça das circunstâncias, que ainda pode residir o princípio da esperança.

Por isto, o filme começa com uma sucessão de choques gerados em situações estranhas: um suicídio, um assassinato que gera a pena por enforcamento, um filho que antes de se atirar do alto dum prédio carrega a arma que a mãe sempre ameaça o pai. De súbito, fui tomado de tal maneira pela absurdidade das circunstâncias e pela dor gerada, que tive a impressão de estar sendo recepcionado pelas trombetas que soam do inferno. Isto me ocorreu porque a porta de entrada de Magnólia nos causa uma sensação estranha, de incômodo com a miséria da condição humana. E este sentimento prepara o espectador para os próximos movimentos.

Não raramente, nos julgamos detentores de nosso mundo, senhores onipotentes que controlam pequenos reinados individuais, regidos pelo princípio do prazer. Mas, contando casos que versam sobre nossa condição incompleta e dependente dos outros (e do acaso), o filme faz a primeira quebra dessa vaidade, ao mostrar que não estamos no controle da situação. Podemos matar Deus ou negá-lo quantas vezes quisermos, mas nunca teremos o seu lugar. Controlar as circunstâncias e ser dono de sua vida não passa de ilusão. Ilusão de crianças tolas brincando de onipotência.

Desta primeira quebra, decorre uma segunda ainda mais complexa e sutil, onde o sagrado é inserido. Ao final do último caso de coincidências absurdas, o narrador reflete: “Não pode ser simplesmente algo que aconteceu. Não foi mera coincidência, essas coisas estranhas acontecem o tempo inteiro”. Ao negar que cada fato ocorreu em decorrência de pura vontade das partes ou do acaso, um elemento externo aos sujeitos e desconhecido é inserido na narrativa. E nisto, reside o sagrado.

Neste sentido, ao apresentar diversas circunstâncias, motivos, desejos, individualidades; mas todas interligadas, versando profundamente sobre uma única coisa (aquilo que somos) o filme busca unidade no caos e na diferença. E faz isto de maneira irretocável, ao mostrar que, afinal, somos todos humanos, participantes da mesma condição. Assim, nega-se uma visão atomística ou pessoal dos fatos; pois, não há sentido achar que vivemos num vazio, onde tudo que ocorre depende de nós. Eu sou eu e as minhas circunstâncias, dizia Ortega y Gasset. E as minhas circunstâncias estão longe de serem meras escolhas particulares. Coisas estranhas acontecem o tempo inteiro, e essa factuabilidade é ao mesmo tempo determinada e indeterminada. Afinal, se no mistério dessa comunicação e interligação entre os seres humanos e suas escolhas e renúncias dá-se as coisas transcorridas, é também nela que se apresenta – pela própria magia de sua existência – o inapreensível, o que deveria ocorrer e que nos parece estranho, e nos oferece uma oportunidade. Aquilo que costumamos chamar de “acaso”.

Como a flor Magnólia que simboliza a nobreza, a dignidade, a beleza esplêndida, e o amor ao natural; o filme busca o sublime, mas a partir de nossa condição humana, como desgraçada, incompleta e degrada. Assim, Magnólia trata dos fracassos, pois são eles que nos humaniza. É o fracasso que interliga seus personagens e dá unidade a esse caos aparente de possibilidades. O filme explora as fraquezas dos indivíduos, os pequenos e os grandes erros, a ambivalência, o perdão e o arrependimento diante da pungência da percepção moral que todos temos. Mas, se ele começa pelo sofrimento e pela destruição, é para desta condição vermos além, ao querer o seu outro (“é errando que se aprende”). Para disto, extrairmos os belos sentimentos que aparecem ao final (como o amor, a compaixão, a amizade, a lealdade), na busca pela bem-aventurança, e na esperança por uma nova chance.

II

Paul Thomas Anderson, diretor e roteirista, optou por criar uma narrativa em forma de mosaico. A vida dos personagens é apresentada de maneira dinâmica, com várias transições na história de um para o outro, permitindo ao espectador visualizar uma correlação entre todos eles. Todos os sujeitos carregam vários traumas, sendo a maior parte vinda da infância, de tal modo, a se sentirem tão oprimidos em suas vivências, que a única opção viável parece ser desistir.

O primeiro personagem apresentado é TJ Mackey, com sua linguagem da sedução. Seduzir para destruir é a sua máxima. Numa parte, ele nos avisa: “Não vou me desculpar por ser quem eu sou! Sou aquilo que acredito ser. Ficar encarando o passado é não progredir, a coisa mais inútil é o que está atrás de mim!” Ele nega o passado, mas por fraqueza, já que suas recordações doem. Seu pai, Earl Partridge, é dono de uma grande rede de televisão, e abandonou sua mãe mesmo à beira da morte, depois de anos de traições. Earl é casado com Linda, uma mulher muito mais jovem, interesseira, que lhe traia com vários homens, mas que começa a sentir remorso ao ver o esposo fenecendo à beira da morte por causa de um câncer.

Por sua vez, Jimmy Gator é o apresentador mais famoso da rede de Partridge, e é um duplo abusador de crianças. Faz sucesso expondo crianças num jogo de perguntas e respostas, onde elas se tornam meros objetos de uma plateia sedenta por acontecimentos. Donnie Smith foi um participante deste programa, e era uma criança pródiga, mas que agora sente o peso do sucesso passado ao fracassar em tudo que tenta. Donnie afirma que tem “muito amor para dar”, mas isto ocorre porque não consegue direcionar um pouco desse amor para si. Para conquistar um barman por quem está apaixonado, mas sequer conhece direito, Donnie mudaria qualquer coisa em si. Stanley é o Donnie do passado, atual participante do programa de Gator, e pressionado pelo pai para alcançar dinheiro e sucesso.

Jimmy Gator também abusou sexualmente de sua filha, Claudia. Por sua vez, Claudia tenta preencher o vazio deixado pelos traumas mal resolvidos nas drogas, viciando-se em cocaína. Jimmy tem um câncer, e só possui dois meses de vida. Claudia conhece Jim Kurring, um homem de princípios morais elevados, que escolheu ser policial para tentar solucionar os problemas dos outros, mas que sofre com as consequências disso: a solidão.

Toda trama gira em torno da memória, do passado que ficou presente. O trauma de infância simboliza a própria cristalização dos pecados dos pais recaindo sobre os filhos (há a citação literal do versículo 25 do Êxodo que vai ao encontro disto). Mas, como se livrar deste estigma? Se desistir não é uma opção, o que fazer? É preciso transformar dor em sabedoria, lágrima em alegria. Só quando se encara este passado, de maneira sincera, com verdade, é que se pode seguir em frente. Enfrentar as incertezas, as dores, a ambivalência, a complexidade do mundo moral, para aprender a perdoar, dar-se nova chance. Buscar na experiência, a unidade de sua consciência, significa sair da confusão reinante, e tentar uma vida de bem-aventurança. E é nesta busca por si, que entra a figura fundamental dos anjos.

III

Numa averiguação de ocorrências, Jim encontra no guarda-roupa de uma mulher, alguns corpos. Na saída, uma criança aproxima-se dele e diz que lhe pode revelar o assassino através de um rap. Na música, ele afirma: “Eu sou o profeta, o professor. Vou te ensinar sobre aquele verme. Que eventualmente se formou, quebrando o pescoço de um antigo opressor. Ele está fugindo do diabo, mas a sua dívida é eterna. E se gosta de provocar dor, ele mesmo vai se machucar. E quando o sol não aparece, o bom Deus faz chover”. O menino revela todo transcorrer simbólico da história de Magnólia, avisando ao policial que para certos atos não há perdão, pois sua dívida seria eterna. Mas que, quando tudo parecesse perdido, as respostas apareceriam aos que precisassem de nova chance.

A criança parece ser um anjo. E isto fica mais claro quando Jim quase é baleado ao correr atrás de Worm. Jim perde o seu revólver, que é levado pelo pequeno rapper. O policial vira chacota entre os colegas, e não entende por que tal coisa lhe ocorre, e pergunta a Deus o motivo pra tal provação. Mas, é essa humilhação que permite a Jim visualizar o peso da verdade e da compreensão no encontro com Claudia. E quando o revólver aparece? Caindo do céu, ao final da chuva de sapos. O menino rapper será responsável também pela salvação de Linda, que se sentindo irremediavelmente culpada, tenta o suicídio.

A relação entre as crianças e os jovens também é tratada no bar num diálogo entre Donnie e um senhor que compra os serviços íntimos do barman. Após Donnie declarar sua paixão pelo jovem, o senhor replica: “É perigoso confundir crianças com anjos”. Donnie responde tal afirmativa indo até o seu passado.

Mas, os anjos não são só enunciativos de verdade ou de uma situação futura; ou ainda, responsáveis pelo funcionamento das situações estranhas. Ao assistirem os dramas morais, na contemplação, eles funcionam como incentivadores externos de uma terapia particular. Escutam os desgraçados, testemunham sua dor, sem fazer qualquer julgamento ou expressão de contrariedade.

Phil Parma escuta pacientemente os arrependimentos de Earl, ao tentar aliviar sua dor na recolha dos cacos fragmentados de sua vida, proporcionando o reencontro entre pai e filho. A repórter, Gwenovier, sem julgar Mackey, obriga-lhe a fazer uma profunda imersão na memória e em suas histórias, fazendo-lhe na raiva, sair da casca de macho alpha e dominador de todas as situações, revelando-se um sujeito frágil, dependente, com medo da perda. E Jim, o policial religioso, que faz da ajuda ao outro o próprio sentido da sua vida, oferece a Claudia um amor incondicional (o único verdadeiro), independente dos fatos e do passado, e dependente apenas da essência do seu ser. Pessoas inspiradas por anjos, que salvam a vida dos outros, dão alento, inspiram, criam novos horizontes, e trazem a esperança.

IV

Magnólia é um filme rico em simbolismos. Em especial, aparecem diversas referências a um dos livros da Bíblia, o Êxodo. O Êxodo é o livro da redenção, do reencontro na fuga. Nele, o povo hebreu foge da tirania do poder egípcio, em busca da terra prometida. A redenção é simbolizada no sangue do Cordeiro Pascoal (12.1-28) e pelo poder de Deus na passagem pelo mar dos Juncos (13.1-14.31). No Monte Sinai, a nação redimida aceita a lei.

Encontramos várias referências ao Êxodo, a própria narrativa baseia-se num impasse do passado, que gera o anseio por uma resposta. Os personagens precisam encontrar uma saída, buscar a si próprios, realizar um novo encontro. Todavia, uma em especial, chama a atenção: a chuva de sapos. No êxodo, cada praga aparece como um julgamento do senhor. E em êxodo 8:2, a praga da chuva de rãs destina-se aos que renegarem a partida.

No limite: é assim que se encontram os personagens no momento derradeiro do filme, antes da chuva de sapos. Donnie está prestes a perder sua identidade. Jim acaba de perder Claudia, que por sua vez, está ainda mais desorientada e escrava do vício. Jimmy Gator renúncia a própria vida depois de não ter tido coragem de confirmar a sua mulher que molestava a filha. Linda tenta se matar em seu carro. Stanley se isola na biblioteca e pensa nas atitudes do pai. E finalmente, Frank vive um sentimento conflituoso a respeito do pai a quem vê partir em sua frente. A vida parece ser plena desgraça e perda. Então, Frank T.J. Mackey grita para o pai: `Não se vá! Não se vá!`. Neste momento, começa a cair sapos do céu.

A chuva de sapos é um castigo, mas ao mesmo tempo, é ela que traz a redenção para todos que receberam nova oportunidade. Como nos dizeres do menino: “E quando o sol não aparece, o bom Deus faz chover”. Donnie quebra os dentes ao ser atingido por um sapo, e entende que não precisava de aparelhos; Jim recupera sua arma e entrega seu amor a Claudia; Earl abre os olhos antes da morte e vê Franck, realizando o encontro com o filho; que por sua vez, irá visitar Linda no hospital, vítima de um suicídio mal sucedido.

O filme termina com uma grande reflexão sobre o que devemos perdoar, contrastando o desprezo pelo poder humano em sua mesquinharia com a piedade por nossa condição. Nessa chave, realiza-se a redenção dos desgraçados. À sua maneira, Magnólia trata do passado, da experiência do perdão, e da condenação

sexta-feira, 27 de junho de 2014

Os "Marginais" Da Bola Contra Os Burocratas De Plantão: em defesa do futebol.



Mulheres, cigarros, bebidas, e quem sabe, uns “entorpecentes” como o Rock n’ Roll. A boa e velha boemia parece cada vez mais distante do futebol moderno, rígido na exigência da condição física privilegiada. Assim como, as astúcias na relva verde (um empurrão ali, um braço esticado, uma porradinha quando necessária) parecem ter virado coisa do passado, na contramão da profissionalização. No entanto, os craques sempre deram seu jeito. Fora ou dentro de campo. Porque muito além de um espetáculo plastificado, em condições fabris prontas para o comércio das emoções, o futebol é – e continuará sendo – um jogo coletivo, de contato, com ritos tribais, que inspiram tradição, compromisso, lealdade, e dignidade. 

Quem já jogou uma única partida de ludopédio na rua ou nos gramados sabe que não se deve lealdade as normas da plateia, a indústria dos bons comportamentos do “politicamente correto”, mas ao seu grupo, sua tribo, pois é nela que se constitui sua identidade no momento mesmo de comunhão com o outro. Assim, no goleiro, deposita-se toda confiança na nobre arte de não deixar vazar sua meta. Do atacante, espera-se a bravura dos heróis, que se atira contra o inimigo para vazar suas redes. Todos possuem uma função. Todos confiam um no outro, e todos sabem que os outros lhe depositaram a confiança. Por isto, não há esporte coletivo sem entrega. A maior – e única profunda – indignidade que pode haver dentro de um campo de futebol é a apatia. Um jogador que não se entrega em campo, que não demonstra vontade ou brilho nos olhos, é um canalha na mais precisa das definições. Pois, não pode haver maior falta de respeito aos seus companheiros, a confiança dada, e a deusa bola, por quem corremos a entregar nossos presentes, crentes por uma dádiva; do que a indiferença.

Praticamente todas as cosmogonias a que temos conhecimento começaram num grandioso embate, gerador do nosso mundo e da realidade. E desta origem ao fim do mundo, a ideia de guerra nos atravessa. Assim, no próprio mito de fundação carregam-se todos os elementos da inevitável queda, o fenecimento por um embate: vida, glória, morte e tragédia estão interligadas. A guerra é mítica. E os esportes coletivos funcionam como uma espécie de metáfora da guerra. Uma equipe de indivíduos uniformizados, prontos a competir contra outra, esperando vencer a batalha de acordo com os objetivos do jogo, diante de uma plateia de amigos ou inimigos.  Qualquer esporte possui os seus rituais. E o hino cantado antes dos jogos de uma Copa do Mundo, por exemplo, nos rememora o senso de pertencimento a um povo, clamando a luta para defesa da honra com seus iguais. Os jogos sempre foram ritualísticos, significando luta, bravura, lealdade aos seus iguais, respeito pela tradição. Mas, pode significar também uma luta íntima: da dignidade e lealdade que o campo impõe contra o medo, a fraqueza e as dúvidas. Rúgbi, futebol, basquete, handebol, polo aquático ou qualquer outro jogo coletivo: a metáfora tribal é a mesma.

Acontece que, o homem – como a vida – é ambivalente, não sendo só constituído na vida material de uma só coisa. Se nos sentimos mais seguros, livres e tranquilos no mundo moderno das instituições; precisamos – também – dar vazão aos nossos impulsos (às vezes, os mais inatos), massacrados por tantas camadas de cultura. Se antes, a guerra tinha caráter sagrado, de demonstração de bravura nas conquistas, cumprindo uma função social; ela foi dissolvida no monótono mundo das formalidades institucionais, onde a banalidade nos assegura mais liberdade e conforto. Mas, como qualquer elemento da nossa vida ambivalente, ela retorna de outras maneiras. Por isto, precisamos de um descanso da normatividade, para rebeldia mediada dos impulsos. E os esportes coletivos fazem esta ponte entre civilização e barbárie, razão e impulso. Sem este sopro, o retorno do recalque do que há de violento no homem transfigura-se em perversão, indo das mais sutis (como a sonsice) às mais perigosas (como o sadomasoquismo).

No entanto, o futebol também é parte de nossa vida moderna, possuindo expectativas de conduta socialmente mediadas, um conjunto de regras escritas a ser impostas pelo árbitro, além de ser um produto exposto à venda. E nesta ambiguidade mora a sua essência: uma disputa entre os impulsos e a razão, entre a comunidade e a sociedade, entre o tribal e as instituições, entre nossa liberdade ensimesmada e nossa liberdade de ver os outros. Neste sentido, por sua incerteza e comoção, o futebol é o mais dionisíaco dos esportes. Dentro de um campo de futebol, não há compromisso formal, leis civilizatórias, mas só a vida do espírito, profundo sentido de existir, sem abstrações. Criando um código próprio de condutas.

Por isto que, jogadores polêmicos tornam-se sempre personagens centrais do jogo. Pois, eles nos trazem um sopro de humanidade, espontaneidade, vida real, e não uma conduta esperada, plastificada. O futebol foi feito para alcançar sua quintessência na paixão das personalidades complexas. Heleno de Freitas era um boêmio, egocêntrico como qualquer artilheiro que se preze, era admirador das mulheres, das boas bebidas, de um bom jazz, e de Dostoiévski. Heleno era o próprio excesso: desmedida de personalidade, desmedida de impulso. E graças a isto, encantou em campo (com dor, gozo, paixão e suor), a ponto de virar personagem de Garbo. Como um herói trágico, foi das grandes glórias ao fundo do poço. Morreu em ruínas, num sanatório, sofrendo de sífilis. Sobre ele, Armando Nogueira dizia: “O futebol heroico e elegante de Heleno de Freitas despertou em mim a paixão pelo futebol. Avassaladora paixão da qual, com a graça de Deus, jamais hei de me curar. Heleno de Freitas foi a personalidade mais fascinante e também a mais dramática que conheci nos estádios".

Quem via aquele menino norte-irlandês de 1,78, a zombetear de toda defesa adversária com seus dribles desconcertantes, encantava-se. George Best era a própria provocação em campo. Partia para cima das defesas adversárias, com tal destemor do fracasso (a bola roubada), da mesma maneira que se entregava a vida sem tino, nas noites de bebidas, cigarros e mulheres. Reza a lenda que o mito conseguiu resolver sozinho uma peleja de ludopédio, mesmo estando visivelmente bêbado. Quem sabe, tenha até jogado melhor.

O que falar então de Almir Pernambuquinho? Almir fazia jus a fama de destemido e bad boy. Ele foi protagonista da maior briga da história do Maracanã. Na final carioca de 1966, Almir desconfiava que o juiz e alguns companheiros de sua equipe, o Flamengo, tinham sido subornados pelos Andrades, reis do jogo do bicho, e administradores do Bangu. O jogo começa, e dois de seus companheiros saem de campo depois de entradas criminosas do adversário, em que o juiz nada deu. O seu goleiro toma gols esquisitos, e Ladeira, atacante do Bangu, agride Paulo Henrique, beque do Flamengo, sem que o juiz nada faça. Almir não teve dúvidas, e indignado, partiu para a porrada, tendo seu nome entoado fanaticamente por sua torcida. Assim, ele protagonizava a maior peleja da história do mítico estádio. Almir morreu em 1973, defendendo atores-bailarinos do grupo “Dzi Croquetes” que estavam sendo agredidos por portugueses asquerosos, num bar de Copacabana. O destemido atacante morreu sendo o que era.

Seja como for, são estes indivíduos errantes, repletos de ambiguidade e complexidade, que dão alma e luz a opacidade da vida, sendo parte da própria essência do jogo. Pois, o futebol não ensina regras, não ensina leis, ou coisas formais e abstratas, ele não é normativo. O futebol é mais carne-viva, paixão, surpresa, irrupção de um momento, breve reconciliação com a natureza. Qual a diferença do craque para nós, reles mortais? Os craques anteveem a jogada, e por impulso, sabem o que deve ser feito, e fará bem feito. Os craques congelam o tempo, intuem a verdade da bola, e elabora sua magia tecendo uma narrativa de imagens esplendorosas. Em certo sentido, os craques são o inverso da civilização, pois não se dobram as camadas sociais, ou a massificação da cultura, ao mostrarem todo seu brilho e elegância, nos distinguindo deles. A igualdade não foi feita para o craque.

Porque no nosso mundo cotidiano, trivial, banal, precisamos de instituições democráticas que freiem a radicalidade do poder, pois a vida em sociedade exige prudência. Não no campo. Lá, o craque é despudor de talento. O futebol é arte, e por isto mora nas dobras do mundo, entre o ser e o não-ser, podendo apresentar em centelhas tão rápidas como um drible de Mané Garrincha, vislumbres de nossa condição paradisíaca.

O futebol não te diz “siga essa regra: não matarás”, mas ensina na prática o sentido mais profundo da existência, na dignidade e lealdade reconquistadas com os seus companheiros e adversários. Pois, também não há maior honra, dignidade, e demonstração de respeito do que o fato de ter alguém a se empenhar em te vencer. A dignidade da competição. Por isto, Camus dizia: "Tudo quanto sei com maior certeza sobre a moral e as obrigações dos homens devo-o ao futebol”.

Agora, em plena Copa do Mundo, assistimos ao triste espetáculo da perseguição pública a um jogador de brio, Luisito Suárez, que vive em sua paixão, dor, glória e erros, a tradição de Heleno de Freitas, Almir Pernambuquinho, Romário, George Best, Edmundo, Gattuso, e tantos outros. Uma mordida não é a conduta mais digna perante o jogo, porque se o contato mais firme, a disputa de bola, a valentia, e até socos e pontapés, fazem parte da realidade da disputa; uma mordida ou uma cuspida são gestos pequenos, mas insultuoso no ambiente futebolístico. Entretanto, o futebol é feito também pelos excessos de indivíduos errantes, que ultrapassam os limites do respeito pela desmedida de compromisso. Ao errar, Suárez nada quis além de provocar o adversário e proteger sua equipe e companheiros. Como o doping de Almir, a virilidade de Gattuso, a malandragem de Romário, la mano de dios de Maradona, são excessos de personagens marcantes, que fazem da sua vida o próprio símbolo da ambivalência.

Erros podem e devem ser punidos, de preferência dentro de campo, ou entre os jogadores. Mas, o que os engravatados da FIFA (que nunca chutaram uma bola na vida e nada compreendem da dignidade e lealdade do jogo) fizeram é um estúpido ato de covardia, seladas por uma pena desproporcional. Porque ontem, hoje, e amanhã, o que os burocratas de plantão – apaixonado por si e suas funções – sempre almejam é só uma coisa: pôr fim a ambivalência da vida, entregando toda esta na certeza formal do preto no branco. Contra os burocratas de plantão, que matam o futebol em sua essência, precisamos resgatar o seu sentido mais real e profundo. O futebol não merece ver Luisito tanto tempo longe, pois ele é parte da essência do futebol.  Mesmo no erro, Luisito é um bravo, um forte, um homem digno, que honra o esporte bretão. Ao invés disso, deveríamos punir, com o nosso desprezo (tornemos os burocratas de plantão insignificantes), os apáticos. Estes sim, os verdadeiros e grandiosíssimos hijos de puta.

Senhores, não tirem do futebol a ambivalência da vida.


Senhores, não tirem de nós essas personalidades complexas, errantes, que moram numa “zona cinzenta”. Senão, vocês estarão nos tirando o próprio futebol.