sábado, 19 de julho de 2014

Na Dialética Mundana, os Anjos Traziam Sopros do Paraíso e dos Desgraçados Fez-se a Redenção: arrependimento e perdão em Magnólia.



“Ao renegar a partida, infestarei de rãs todo seu território”.
Êxodo 8:2
I

“Deixai, ó vós que entrais, toda a esperança!” Nada definiria melhor o inverso de Magnólia do que a porta de entrada do inferno de Dante. O filme Magnólia, ao contrário, trata dos desgraçados em terra. Pois, é na desgraça das circunstâncias, que ainda pode residir o princípio da esperança.

Por isto, o filme começa com uma sucessão de choques gerados em situações estranhas: um suicídio, um assassinato que gera a pena por enforcamento, um filho que antes de se atirar do alto dum prédio carrega a arma que a mãe sempre ameaça o pai. De súbito, fui tomado de tal maneira pela absurdidade das circunstâncias e pela dor gerada, que tive a impressão de estar sendo recepcionado pelas trombetas que soam do inferno. Isto me ocorreu porque a porta de entrada de Magnólia nos causa uma sensação estranha, de incômodo com a miséria da condição humana. E este sentimento prepara o espectador para os próximos movimentos.

Não raramente, nos julgamos detentores de nosso mundo, senhores onipotentes que controlam pequenos reinados individuais, regidos pelo princípio do prazer. Mas, contando casos que versam sobre nossa condição incompleta e dependente dos outros (e do acaso), o filme faz a primeira quebra dessa vaidade, ao mostrar que não estamos no controle da situação. Podemos matar Deus ou negá-lo quantas vezes quisermos, mas nunca teremos o seu lugar. Controlar as circunstâncias e ser dono de sua vida não passa de ilusão. Ilusão de crianças tolas brincando de onipotência.

Desta primeira quebra, decorre uma segunda ainda mais complexa e sutil, onde o sagrado é inserido. Ao final do último caso de coincidências absurdas, o narrador reflete: “Não pode ser simplesmente algo que aconteceu. Não foi mera coincidência, essas coisas estranhas acontecem o tempo inteiro”. Ao negar que cada fato ocorreu em decorrência de pura vontade das partes ou do acaso, um elemento externo aos sujeitos e desconhecido é inserido na narrativa. E nisto, reside o sagrado.

Neste sentido, ao apresentar diversas circunstâncias, motivos, desejos, individualidades; mas todas interligadas, versando profundamente sobre uma única coisa (aquilo que somos) o filme busca unidade no caos e na diferença. E faz isto de maneira irretocável, ao mostrar que, afinal, somos todos humanos, participantes da mesma condição. Assim, nega-se uma visão atomística ou pessoal dos fatos; pois, não há sentido achar que vivemos num vazio, onde tudo que ocorre depende de nós. Eu sou eu e as minhas circunstâncias, dizia Ortega y Gasset. E as minhas circunstâncias estão longe de serem meras escolhas particulares. Coisas estranhas acontecem o tempo inteiro, e essa factuabilidade é ao mesmo tempo determinada e indeterminada. Afinal, se no mistério dessa comunicação e interligação entre os seres humanos e suas escolhas e renúncias dá-se as coisas transcorridas, é também nela que se apresenta – pela própria magia de sua existência – o inapreensível, o que deveria ocorrer e que nos parece estranho, e nos oferece uma oportunidade. Aquilo que costumamos chamar de “acaso”.

Como a flor Magnólia que simboliza a nobreza, a dignidade, a beleza esplêndida, e o amor ao natural; o filme busca o sublime, mas a partir de nossa condição humana, como desgraçada, incompleta e degrada. Assim, Magnólia trata dos fracassos, pois são eles que nos humaniza. É o fracasso que interliga seus personagens e dá unidade a esse caos aparente de possibilidades. O filme explora as fraquezas dos indivíduos, os pequenos e os grandes erros, a ambivalência, o perdão e o arrependimento diante da pungência da percepção moral que todos temos. Mas, se ele começa pelo sofrimento e pela destruição, é para desta condição vermos além, ao querer o seu outro (“é errando que se aprende”). Para disto, extrairmos os belos sentimentos que aparecem ao final (como o amor, a compaixão, a amizade, a lealdade), na busca pela bem-aventurança, e na esperança por uma nova chance.

II

Paul Thomas Anderson, diretor e roteirista, optou por criar uma narrativa em forma de mosaico. A vida dos personagens é apresentada de maneira dinâmica, com várias transições na história de um para o outro, permitindo ao espectador visualizar uma correlação entre todos eles. Todos os sujeitos carregam vários traumas, sendo a maior parte vinda da infância, de tal modo, a se sentirem tão oprimidos em suas vivências, que a única opção viável parece ser desistir.

O primeiro personagem apresentado é TJ Mackey, com sua linguagem da sedução. Seduzir para destruir é a sua máxima. Numa parte, ele nos avisa: “Não vou me desculpar por ser quem eu sou! Sou aquilo que acredito ser. Ficar encarando o passado é não progredir, a coisa mais inútil é o que está atrás de mim!” Ele nega o passado, mas por fraqueza, já que suas recordações doem. Seu pai, Earl Partridge, é dono de uma grande rede de televisão, e abandonou sua mãe mesmo à beira da morte, depois de anos de traições. Earl é casado com Linda, uma mulher muito mais jovem, interesseira, que lhe traia com vários homens, mas que começa a sentir remorso ao ver o esposo fenecendo à beira da morte por causa de um câncer.

Por sua vez, Jimmy Gator é o apresentador mais famoso da rede de Partridge, e é um duplo abusador de crianças. Faz sucesso expondo crianças num jogo de perguntas e respostas, onde elas se tornam meros objetos de uma plateia sedenta por acontecimentos. Donnie Smith foi um participante deste programa, e era uma criança pródiga, mas que agora sente o peso do sucesso passado ao fracassar em tudo que tenta. Donnie afirma que tem “muito amor para dar”, mas isto ocorre porque não consegue direcionar um pouco desse amor para si. Para conquistar um barman por quem está apaixonado, mas sequer conhece direito, Donnie mudaria qualquer coisa em si. Stanley é o Donnie do passado, atual participante do programa de Gator, e pressionado pelo pai para alcançar dinheiro e sucesso.

Jimmy Gator também abusou sexualmente de sua filha, Claudia. Por sua vez, Claudia tenta preencher o vazio deixado pelos traumas mal resolvidos nas drogas, viciando-se em cocaína. Jimmy tem um câncer, e só possui dois meses de vida. Claudia conhece Jim Kurring, um homem de princípios morais elevados, que escolheu ser policial para tentar solucionar os problemas dos outros, mas que sofre com as consequências disso: a solidão.

Toda trama gira em torno da memória, do passado que ficou presente. O trauma de infância simboliza a própria cristalização dos pecados dos pais recaindo sobre os filhos (há a citação literal do versículo 25 do Êxodo que vai ao encontro disto). Mas, como se livrar deste estigma? Se desistir não é uma opção, o que fazer? É preciso transformar dor em sabedoria, lágrima em alegria. Só quando se encara este passado, de maneira sincera, com verdade, é que se pode seguir em frente. Enfrentar as incertezas, as dores, a ambivalência, a complexidade do mundo moral, para aprender a perdoar, dar-se nova chance. Buscar na experiência, a unidade de sua consciência, significa sair da confusão reinante, e tentar uma vida de bem-aventurança. E é nesta busca por si, que entra a figura fundamental dos anjos.

III

Numa averiguação de ocorrências, Jim encontra no guarda-roupa de uma mulher, alguns corpos. Na saída, uma criança aproxima-se dele e diz que lhe pode revelar o assassino através de um rap. Na música, ele afirma: “Eu sou o profeta, o professor. Vou te ensinar sobre aquele verme. Que eventualmente se formou, quebrando o pescoço de um antigo opressor. Ele está fugindo do diabo, mas a sua dívida é eterna. E se gosta de provocar dor, ele mesmo vai se machucar. E quando o sol não aparece, o bom Deus faz chover”. O menino revela todo transcorrer simbólico da história de Magnólia, avisando ao policial que para certos atos não há perdão, pois sua dívida seria eterna. Mas que, quando tudo parecesse perdido, as respostas apareceriam aos que precisassem de nova chance.

A criança parece ser um anjo. E isto fica mais claro quando Jim quase é baleado ao correr atrás de Worm. Jim perde o seu revólver, que é levado pelo pequeno rapper. O policial vira chacota entre os colegas, e não entende por que tal coisa lhe ocorre, e pergunta a Deus o motivo pra tal provação. Mas, é essa humilhação que permite a Jim visualizar o peso da verdade e da compreensão no encontro com Claudia. E quando o revólver aparece? Caindo do céu, ao final da chuva de sapos. O menino rapper será responsável também pela salvação de Linda, que se sentindo irremediavelmente culpada, tenta o suicídio.

A relação entre as crianças e os jovens também é tratada no bar num diálogo entre Donnie e um senhor que compra os serviços íntimos do barman. Após Donnie declarar sua paixão pelo jovem, o senhor replica: “É perigoso confundir crianças com anjos”. Donnie responde tal afirmativa indo até o seu passado.

Mas, os anjos não são só enunciativos de verdade ou de uma situação futura; ou ainda, responsáveis pelo funcionamento das situações estranhas. Ao assistirem os dramas morais, na contemplação, eles funcionam como incentivadores externos de uma terapia particular. Escutam os desgraçados, testemunham sua dor, sem fazer qualquer julgamento ou expressão de contrariedade.

Phil Parma escuta pacientemente os arrependimentos de Earl, ao tentar aliviar sua dor na recolha dos cacos fragmentados de sua vida, proporcionando o reencontro entre pai e filho. A repórter, Gwenovier, sem julgar Mackey, obriga-lhe a fazer uma profunda imersão na memória e em suas histórias, fazendo-lhe na raiva, sair da casca de macho alpha e dominador de todas as situações, revelando-se um sujeito frágil, dependente, com medo da perda. E Jim, o policial religioso, que faz da ajuda ao outro o próprio sentido da sua vida, oferece a Claudia um amor incondicional (o único verdadeiro), independente dos fatos e do passado, e dependente apenas da essência do seu ser. Pessoas inspiradas por anjos, que salvam a vida dos outros, dão alento, inspiram, criam novos horizontes, e trazem a esperança.

IV

Magnólia é um filme rico em simbolismos. Em especial, aparecem diversas referências a um dos livros da Bíblia, o Êxodo. O Êxodo é o livro da redenção, do reencontro na fuga. Nele, o povo hebreu foge da tirania do poder egípcio, em busca da terra prometida. A redenção é simbolizada no sangue do Cordeiro Pascoal (12.1-28) e pelo poder de Deus na passagem pelo mar dos Juncos (13.1-14.31). No Monte Sinai, a nação redimida aceita a lei.

Encontramos várias referências ao Êxodo, a própria narrativa baseia-se num impasse do passado, que gera o anseio por uma resposta. Os personagens precisam encontrar uma saída, buscar a si próprios, realizar um novo encontro. Todavia, uma em especial, chama a atenção: a chuva de sapos. No êxodo, cada praga aparece como um julgamento do senhor. E em êxodo 8:2, a praga da chuva de rãs destina-se aos que renegarem a partida.

No limite: é assim que se encontram os personagens no momento derradeiro do filme, antes da chuva de sapos. Donnie está prestes a perder sua identidade. Jim acaba de perder Claudia, que por sua vez, está ainda mais desorientada e escrava do vício. Jimmy Gator renúncia a própria vida depois de não ter tido coragem de confirmar a sua mulher que molestava a filha. Linda tenta se matar em seu carro. Stanley se isola na biblioteca e pensa nas atitudes do pai. E finalmente, Frank vive um sentimento conflituoso a respeito do pai a quem vê partir em sua frente. A vida parece ser plena desgraça e perda. Então, Frank T.J. Mackey grita para o pai: `Não se vá! Não se vá!`. Neste momento, começa a cair sapos do céu.

A chuva de sapos é um castigo, mas ao mesmo tempo, é ela que traz a redenção para todos que receberam nova oportunidade. Como nos dizeres do menino: “E quando o sol não aparece, o bom Deus faz chover”. Donnie quebra os dentes ao ser atingido por um sapo, e entende que não precisava de aparelhos; Jim recupera sua arma e entrega seu amor a Claudia; Earl abre os olhos antes da morte e vê Franck, realizando o encontro com o filho; que por sua vez, irá visitar Linda no hospital, vítima de um suicídio mal sucedido.

O filme termina com uma grande reflexão sobre o que devemos perdoar, contrastando o desprezo pelo poder humano em sua mesquinharia com a piedade por nossa condição. Nessa chave, realiza-se a redenção dos desgraçados. À sua maneira, Magnólia trata do passado, da experiência do perdão, e da condenação